No artigo intitulado Nem tudo o que é bom para os EUA é bom para o Brasil, Denise Assis critica a “a morosidade da Justiça” ao tratar dos processos envolvendo Jair Bolsonaro (PL), incluindo o caso das falsificações de vacinas e outras investigações criminais. Para Assis, esse ritmo lento beneficiaria o ex-presidente, que, ao não ser julgado rapidamente, “vai atenuando a indignação contra ele e mais 16 pessoas”.
A solução, na visão da jornalista, seria intensificar as ações repressivas do sistema judiciário, concretizando prisões e condenações que retirariam Bolsonaro e outros bolsonaristas de circulação e, supostamente, protegeriam a sociedade de suas influências. Assis, no entanto, ignora o que a realidade demonstra rotineiramente sobre quem, de fato, controla o aparato repressivo do Estado.
Acreditar que a prisão de Bolsonaro será uma vitória para a esquerda é um equívoco profundo, visto que, na prática, o que ela defende é uma ação de coerção estatal, cujos braços – polícias, Judiciário, Ministério Público – não estão sob o controle de forças progressistas.
Ao exigir o uso desses instrumentos para combater adversários políticos, Assis parece pedir que o próprio bolsonarismo, paradoxalmente, atue contra si mesmo, como se fosse possível que o próprio aparato reacionário do Estado fosse se voltar de maneira honesta contra o grupo que mais o fortalece. No mundo real, trata-se de uma expectativa totalmente louca, que apenas projeta no imaginário o desejo de uma solução milagrosa, totalmente descolada das contradições concretas do poder de Estado.
A colunista, porém, insiste: “no desenrola, a bandidagem pega o que lhe está sendo imputado, vira do avesso, junta cacos como no teatro, e usa como base da sua própria defesa.”
Sua descrição do “método” de Bolsonaro para escapar das acusações falha em ver o que está por trás da aparente “morosidade” do sistema judiciário. O que Assis denomina “técnica da bandidagem” é, na realidade, a proteção oferecida ao líder da extrema direita e outros representantes do campo, já que o Judiciário, a Polícia Federal, o Ministério Público e demais instituições têm como missão fundamental preservar a ordem social que serve aos interesses da classe dominante.
Quando acionados para reprimir alguém, esses órgãos operam de forma calculada, para fortalecer o regime em que eles próprios se baseiam. Assim, a ingenuidade de se apoiar na coerção estatal leva ao erro de pedir que o braço repressor atue em favor da esquerda, ignorando que, ao fim, qualquer ação do Estado servirá, inevitavelmente, aos interesses dos poderosos.
Na visão da jornalista, Bolsonaro faz uso da Justiça para evitar punições ao empregar um “cinismo transbordante”, como ela escreve. A questão, porém, não é o “cinismo” do ex-presidente; é o alinhamento do sistema judicial com o regime do qual Bolsonaro e o bolsonarismo são parte.
Pedir que o Judiciário atue contra os bolsonaristas é esquecer que esses mesmos juízes, que hoje “demoram” a julgar Bolsonaro, são os mesmos que, durante anos, impuseram penas pesadas e perseguições aos trabalhadores, movimentos sociais, sindicalistas e lideranças populares. Colocar-se sob as esperanças de que o aparato repressor atue contra o ex-presidente, em vez de continuar a atender à direita, é não perceber o papel fundamental que esses órgãos desempenham para conter e enfraquecer as organizações de base.
Em outro ponto, Assis se queixa da indulgência da imprensa, que estaria promovendo Bolsonaro e dando espaço para que ele “desenrole o seu passado recente”. Ela acusa os jornais burgueses de servirem de palanque para as defesas e as desculpas do ex-presidente, consolidando uma imagem de vítima do “conservadorismo reacionário”.
Certamente, a imprensa possui forte poder de manipulação, mas qual é, realmente, o alcance da queixa de Assis, que diz que a imprensa “restaura a foto do inelegível”? Se a maioria dos órgãos de comunicação dedicam espaço e até certo apelo simpático a Bolsonaro, isso não ocorre por descuido ou “moralidade branda”, mas sim porque são parte interessada na sobrevivência política do ex-presidente e de suas alianças.
A esquerda não pode confiar na repressão e, muito menos, na manipulação que a imprensa imperialista exerce. Ao contrário, deve entender que esse apoio ao bolsonarismo não ocorre por acaso, mas de um alinhamento de fundo social, de uma classe que vendo a impossibilidade de enfrentar a esquerda de outra forma, desloca-se à extrema direita.
O que Assis considera uma lentidão processual é, na realidade, uma operação velada de preservação de um aliado estratégico das forças burguesas. Acreditar que o sistema judicial, que atua para manter a repressão das classes populares, voltaria agora a sua “justiça imparcial” para eliminar Bolsonaro é uma ilusão perigosa e sem fundamento. Ao depositar sua fé no poder de coerção, Assis atua ainda para renunciar a autonomia da esquerda.
Para qualquer observador atento, confiar no poder do Estado contra Bolsonaro equivale a ignorar que essa mesma máquina estatal sempre age de forma a sufocar qualquer tipo de movimentação independente e autônoma da classe trabalhadora e de suas lideranças. Como Assis pode supor que essas forças atuariam com honestidade em favor dos trabalhadores e da esquerda, sendo que seu histórico é justamente de criminalizar e eliminar lideranças populares?
“Vai ter cobertura de Bolsonaro sendo preso?”, questiona a jornalista, “Vai ter Bolsonaro preso? Vou pedir ao Papai Noel…” Qual, porém, seria o efeito direto do uso das instituições repressivas contra o bolsonarismo? Se o governo atual utilizar a repressão, com as esperanças de que esse uso se direcione apenas ao seu inimigo, o que impede que a extrema direita recorra ao mesmo mecanismo?
Quando isso acontecer, quem será mais destrutivo? Ao invocar o poder repressor do Estado, Assis inadvertidamente abre espaço para que a mesma política punitiva seja usada indiscriminadamente contra os próprios movimentos de trabalhadores que, em última análise, são os únicos que oferecem oposição real ao programa da burguesia.
A pressão pela repressão serve, na verdade, para criar um clima autoritário. Assis, ao convocar o Estado para que “acelere” as punições, não enxerga que essa máquina, se atiçada, se voltará, como sempre, contra as organizações autônomas e populares.
A esquerda, ao contrário, deve rejeitar a expansão dessa política entendendo que os trabalhadores jamais terão controle sobre o aparato repressivo do Estado. A luta contra o bolsonarismo passa pela construção de organizações de base, autônomas e independentes, que reúnam a classe trabalhadora em torno de suas demandas, em oposição à repressão estatal, que, no fim das contas, só aprofunda a divisão entre o povo e abre caminho para mais ataques às suas organizações.
O apelo de Assis para o Judiciário atuar contra Bolsonaro só demonstra a falta de confiança na mobilização popular, nas bases da esquerda e no povo brasileiro. É preciso que a esquerda entenda que a sua principal força reside na ação dos trabalhadores e não no uso do aparato repressivo do Estado, que, em essência, serve aos interesses daqueles que mantém o próprio Bolsonaro livre e ativo politicamente.
Pedir ao “Papai Noel” cadeia para Bolsonaro é uma fantasia totalmente fora da realidade, na melhor das hipóteses. Na pior, implica em habilitar a intervenção do aparelho de repressão na luta política, o que fatalmente acabará tendo seus piores reflexos quando estes se dedicarem a perseguir a esquerda. Cuidado com o que deseja, Assis. Você pode conseguir e não gostar nem um pouco do resultado.