Na coluna publicada pelo jornal golpista O Globo e intitulada Culpa pela derrota de Kamala não é do identitarismo, Flávia Oliveira faz um insano malabarismo retórico para creditar à vitória do presidente eleito dos EUA, o republicano Donald Trump, não como sintoma de uma crise da política imperialista, mas da “falta de renda” e das “condições do mercado de trabalho”. Baseada em sabe-se lá o que, Oliveira diz que “Biden não pretendia cumprir mais de um mandato”, porém, “um par de anos atrás, Biden mudou de ideia sobre o mandato único”. Diz a global:
“Num misto de arrogância e euforia pelos bons resultados da gestão nos indicadores econômicos (PIB, desemprego e inflação) e nos investimentos para a transição energética, abafou a tradição democrata de submeter candidatos à Presidência a prévias. Usou a prerrogativa de função para lançar-se à reeleição.”
Ora, mas se haviam “bons resultados” na economia norte-americana, como explicar a derrota? Oliveira claramente demonstra uma preocupação maior com a defesa do identitarismo do que com a credibilidade de seu texto e mesmo a lógica, A jornalista fala em bons indicadores econômicos, nomeadamente “PIB, desemprego e inflação” ao colocar como argumentos destacados para a vitória de Trump, para depois dar uma guinada de 180 graus e destacar “falta de renda” e “mercado de trabalho” como decisivas para a vitória do republicano. Recorrendo ao famoso “especialista”, a articulista continua:
“— Estava muito clara a frustração das pessoas com a economia. Houve queda absoluta de poder de compra. Representatividade fica em segundo plano quando as condições de sobrevivência desapareceram — analisa o economista Rogerio Studart, ex-diretor para o Brasil no BID e no Banco Mundial, que visitou um sem-número de lares na Pensilvânia no período eleitoral.”
A jornalista global precisaria primeiro definir-se quanto à situação econômica, afinal, falar em “euforia e bons resultados” é uma contradição em termos com “queda absoluta de poder de compra” e colocações do gênero. Resolvida essa confusão, seria preciso uma definição quanto ao papel da “representatividade”, um dos aspectos centrais da cultura woke, conhecida também no País como “identitarismo”. Continua a jornalista:
“Porque 20% dos homens negros e metade dos latinos votaram em Trump, há quem diga que a culpa [pela derrota de Harris] é do identitarismo. É como chamam, no Brasil, mulheres, pretos, indígenas, LGBTQIA+ que ousam reivindicar participação na vida pública, tal qual têm — e sempre tiveram — os homens brancos.”
Nada mais longe da verdade. O identitarismo não reside em “mulheres, pretos, indígenas, LGBTQIA+ que ousam reivindicar participação na vida pública”, mas no uso demagógico que oportunistas da pequena burguesia fazem desses grupos, para beneficiar as pequenas ambições desta classe social, sem medir as consequências dos custos políticos do que fazem, cuja pista pode ser encontrada na própria continuação do parágrafo de Oliveira, que opõe os grupos supracitados aos “os homens brancos”, os responsáveis pela opressão desses setores e que, na fantasia da jornalista global, “nunca arredam pé, exceto quanto a derrota é certa”.
Ao dissociar o abstrato “homem branco” de sua classe social, o identitarismo o transforma em um alvo mais palatável à classe dominante, primeiro porque oculta o verdadeiro opressor: a burguesia. Em segundo lugar, o identitarismo beneficia a manutenção da opressão real, na medida em que coloca setores da classe trabalhadora uns contra os outros facilitando a manutenção da ditadura que submete todos os operários, sem distinção de sexo ou cor. Por fim, esse jogo de máscaras beneficia também a pequena burguesia carreirista, capaz de tudo por um cargo, inclusive de promover um espetáculo de luta fictícia, enquanto terminam desviando a atenção das contradições reais.
“Enfrentaria o mesmo Donald Trump, bilionário ultramidiático que vencera a senadora e ex-primeira-dama Hillary Clinton, em 2016; nunca deixou de ser candidato; aparecia como favorito nas pesquisas diante de Biden; jamais deixou de inflamar massas com mentiras, xenofobia, racismo e misoginia. Kamala emprestou vitalidade à campanha democrata, a ponto de aparecer à frente do adversário em vários momentos; arrecadou volume inédito de doações, na casa de bilhões de dólares; peregrinou por estados-chave; reuniu apoio de uma constelação de artistas; pôs o casal Barack e Michelle Obama em palanques e filmes publicitários.”
A explicação de Oliveira para o fracasso eleitoral da candidata do genocídio do povo palestino é uma mistura incoerente de causas e efeitos que, ao final, não se sustentam nem na lógica nem nos fatos. Segundo a jornalista, Harris teria liderado a disputa eleitoral em certos momentos, além de contar com apoio massivo de celebridades, arrecadações bilionárias e até o suporte do casal Obama. Todos os ingredientes de um show político supostamente bem-sucedido.
Contraditoriamente, porém, ela conclui que a derrota de Harris foi causada por Trump, um “bilionário ultramidiático” que “jamais deixou de inflamar as massas”. Ora, se Kamala contava com o apoio de todo o aparato de comunicação e financeiro disponível, como se explica a derrota para um candidato que, na propaganda da própria jornalista, seria apenas um xenófobo apoiado por “massas inflamadas”?
Esse tipo de argumento revela mais sobre o delírio da imprensa identitária do que sobre a realidade política. Finalmente, o termo “ultramidiático” poderia tranquilamente ser aplicado ao casal Obama, que, mesmo não o recebendo, é percebido dessa forma pela jornalista.
A derrota de Harris, longe de ser um fenômeno sobrenatural ou de uma crise histérica social, é a expressão direta de um descontentamento popular com a política imperialista e a demagogia identitária que a acompanha. Enquanto jornalistas como Oliveira insistem em culpar abstrações como “o homem branco” e “o racismo estrutural” pela rejeição aos democratas, o verdadeiro motivo salta aos olhos: a política identitária, que se ocupa em dividir a classe trabalhadora com rótulos e fábulas moralistas, enfrenta uma rejeição crescente por parte de uma população que sofre com problemas reais, como a falta de emprego e o custo de vida.
O povo americano (como qualquer outro) não é cego; percebe a falsidade de uma campanha que, em vez de atacar os interesses econômicos de quem realmente os oprime, prefere fazer demagogia. Diante de uma política diretamente ligada ao genocídio do povo palestino, todos os atributos que poderiam enganar um incauto quanto a sua natureza caíram por terra.