Publicado no portal Brasil 247 no último dia 3, o artigo Reunião atrasada, mas necessária, escrito pelo historiador Manuel Domingos Neto, faz uma defesa tão apaixonada quanto reveladora dos rumos profundamente direitistas que a esquerda brasileira vem tomando. Em defesa do macabro projeto de SUS da segurança pública apresentado pelo governo federal e elogiado por bolsonaristas – como o governador paulista Tarcisio de Freitas (Republicanos) e o governador goiano Ronaldo Caiado (União Brasil) -, Neto diz logo no começo:
“Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002. No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.”
O autor parece achar que a presença de “profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas” nos debates sobre o programa de segurança de 2002 fosse uma prova de sua legitimidade. No entanto, quem realmente importa – a população pobre, trabalhadora, as comunidades das favelas, bairros operários e ocupações rurais e urbanas – esteve fora dessa mesa.
Como de costume, essas pessoas só aparecem no discurso desses “especialistas” como números, nunca como sujeitos políticos com direito a participar das decisões que impactam diretamente suas vidas. O autor tenta retratar como algo positivo o fato de que o governo FHC, de suposta oposição, “respeitou” a iniciativa de Lula.
Que respeito merece um governo que matou, pela fome e miséria, 299 crianças por dia? Isso sim é um verdadeiro crime em massa que os órgãos de comunicação convenientemente enterram junto com as vítimas. Enquanto o Brasil inteiro era entregue às multinacionais e ao saque estrangeiro, fica claro que elogios dos tucanos ao plano petista revelam, na verdade, o caráter inócuo e passivo de uma proposta que não ameaçava em nada o regime. Foi um plano que se adequou aos interesses da burguesia e, assim, recebeu seu aval.
“Veio o golpe parlamentar contra Dilma. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).”
A ironia da qual o autor fala aqui só confirma a tendência dos governos do PT em capitular diante dos interesses da direita. Se o programa de segurança foi facilmente ressuscitado por Temer, então ele nunca foi verdadeiramente uma proposta progressista. Pelo contrário: é uma política tão adaptável à direita que um golpista como Temer pôde adotá-la sem hesitação. Fica claro que o pacote de Lewandowski não é outra coisa senão uma reciclagem da política de repressão do regime, agora sob a máscara de “segurança pública”. Nada mais longe dos interesses do povo, uma vez que o projeto visa ampliar o aparato repressor contra aqueles que são as maiores vítimas desse mesmo aparato. Chama-se de “segurança” o que é, na prática, uma guerra civil contra a população trabalhadora e explorada.
“Finalmente, o ministro Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos. (…) A PEC do ministro Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).”
Esse parágrafo desvela por completo o teor reacionário do plano de Lewandowski. O autor apresenta como uma solução para a “disfuncionalidade da segurança pública” nada menos que a restrição de garantias constitucionais fundamentais. A PEC em questão é um ataque explícito aos direitos garantidos pela Constituição, pois significa concentrar ainda mais poder nas mãos do governo federal, com o objetivo claro de endurecer a repressão contra o povo. Ao mencionar que o projeto enfrentaria a “criminalidade” e as “milícias”, o autor tenta desviar a atenção de que o verdadeiro alvo dessa política não são as organizações criminosas, mas sim o povo pobre, que é quem sempre paga o preço desse tipo de “pacote de segurança”. É evidente que a aprovação desse projeto representa uma escalada na repressão aos movimentos populares, sob o pretexto de combater a criminalidade.
Na realidade, o interesse por trás do artigo do autor não é o bem-estar da população, mas sim a defesa de uma Frente Ampla que une o PT e uma esquerda pequeno-burguesa derrotista com a direita tradicional, mais próxima dos interesses do imperialismo. A quantidade de elogios dirigidos aos tucanos, serviçais do imperialismo notórios como Aloysio Nunes e Aécio Neves, é nauseante, e revela o verdadeiro propósito do texto: fortalecer essa aliança fracassada, que na prática atua para preservar o regime e sufocar a luta popular.
O pacote repressivo de Lewandowski prevê a criação de um aparato policial centralizado que poderia facilmente transformar-se em uma “PM federal”, substituindo a PRF e ampliando a repressão estatal. Sob a cobertura de um discurso de “segurança cidadã”, o que realmente se propõe é um novo braço repressor, semelhante à PRF que executou Genivaldo de Jesus Santos em uma câmara de gás improvisada em 2023. Todos os setores dessa Frente Ampla estão se mostrando como uma ameaça para o povo brasileiro, e é urgente que a esquerda se mobilize para barrar essa ofensiva reacionária.