Numa de nossas primeiras colunas no Diário Causa Operária, introduzimos o conceito de software livre e suas diferenças em relação ao simples fato de um projeto ter seu código aberto (open source, em inglês). Nesta última semana, porém, um ataque frontal foi desferido ao software livre, talvez para o bem.
Começando pelo ataque, o principal projeto de software livre do mundo, o sistema operacional Linux, excluiu de sua lista de mantenedores dezenas de contribuidores russos. Entrando em detalhes legais, o conselho da Fundação Linux, entidade que observa o projeto, orientou sua liderança a retirar os russos da lista de mantenedores porque seriam funcionários de empresas sancionadas pelo governo norte-americano. James Bottomley, funcionário da IBM e um dos principais desenvolvedores do Linux, declarou que funcionários de empresas sancionadas não podem aparecer listados como mantenedore do sistema operacional e que suas contribuições serão “sujeitas a restrições”.
Esse banimento não passou desapercebido. A lista de emails do Linux foi tomada por protestos de desenvolvedores de todo o mundo, dispensados pelo líder e criador do sistema, o finlandês Linus Torvalds, como “trolls russos”.
Foi apurado que alguns dos desenvolvedores afastados trabalhavam para empresas sancionadas, mas não se sabe se contribuíram ao Linux a serviço de seus empregadores ou não. Mas em que isso deveria impactar o desenvolvimento do sistema? Inúmeros mantenedores trabalham diretamente para agências de inteligência imperialistas e são pagos para trabalhar no Linux. Receberão o mesmo escrutínio que os desenvolvedores russos?
O resultado dessa exclusão é simples: o software livre não é exatamente livre. Pode não estar sujeito à transformação em software proprietário para fins lucrativos, mas está sujeito à censura de desenvolvedores por motivos políticos. Poderiam argumentar que outros desenvolvedores já foram afastados anteriormente (e não há falta de pessoas polêmicas envolvidas no projeto Linux), ou que os desenvolvedores poderiam simplesmente clonar o projeto e continuar seu desenvolvimento de forma apartada, mas isso derrota completamente um dos principais objetivos do software livre: o trabalho colaborativo. Ao que tudo indica, a exclusão não se deu porque os desenvolvedores russos estavam atrapalhando o projeto, mas por meras razões políticas externas ao Linux.
Dizemos que esse desenvolvimento, apesar de negativo, tem um lado positivo porque deve afastar o desenvolvimento de software livre de certa institucionalidade excessiva, assumida pelo movimento pelo caráter legal da Licença Pública GNU (GPL) . Por que não simplesmente declarar os projetos como efetivamente livres, para quem quiser usar e contribuir como bem entender?
Apesar de seus benefícios, a GPL é uma ideia reformista que se apoia na legislação local para garantir que suas determinações sejam aplicadas. Em contrapartida, empresas desenvolvendo software livre, GPL, também devem aderir à legislação local. Mais especificamente, a Fundação Linux teve que aderir à Ordem Executiva 14.071 emitida por Joe Biden em 2022, que especificava as condições das sanções impostas sobre a Rússia.
Os direitos que a GPL prevê foram revolucionários quando propostos, mas hoje são meros reflexos da forma mais lucrativa que certas empresas encontraram de trabalhar. Em troca da abertura de todo desenvolvimento feito por seus funcionários, a empresa ganha o desenvolvimento realizado por funcionários de outras empresas (e, residualmente, de desenvolvedores independentes). A GPL não está em contradição com o capitalismo, que enxerga o software livre como uma espécie de infraestrutura pública digital. Uma versão virtual de estradas de ferro, utilizadas por todos os capitalistas como infraestrutura comum para escoar seus produtos. Pode ser mais lucrativo manter seu código fechado e vendê-lo num pacote para seus clientes? Para certas empresas, sim, para outras nem tanto. O fato é que a polarização do mundo entre imperialismo e a maioria oprimida do planeta expôs o caráter ultrapassado do reformismo da GPL.
Não estamos propondo aqui um retorno ao mero código livre, sem as garantias da GPL. As ferramentas de aprendizagem de máquina capazes de gerar código e que, em grande medida, se apoiam em software livre e código aberto apontam para o futuro. Um futuro livre de discussões infrutíferas sobre autoria e propriedade intelectual, um futuro no qual toda a humanidade pode acessar livremente a produção humana como um todo e no qual podem se organizar e colaborar entre si como bem entenderem.