O imbróglio diplomático entre Brasil e Venezuela teve um novo episódio na cúpula dos BRICS. O balão de ensaio fora lançado nas páginas dos jornais da burguesia nacional antes mesmo do evento começar em Kazan, na Rússia. Teóricos da conspiração soltaram rojões com o acidente doméstico sofrido pelo presidente Lula, que impossibilitou a viagem do presidente, substituído pelo representante do sionismo no Brasil e, em segundo lugar, representante do Brasil no exterior, o ministro Mauro Vieira.
Ainda havia esperança dos rumores sobre o veto brasileiro à entrada da Venezuela nos BRICS não passarem disso, rumores. Celso Amorim, conselheiro do presidente para assuntos internacionais, então declarou que a Venezuela tinha espaço no G77 e na ONU, uma espécie de xingamento diplomático visto o papel inócuo dessas instituições. Ainda assim, havia quem acreditasse que Lula seria incapaz de sabotar dessa forma o país vizinho e aliado histórico. Eis que a cúpula aconteceu e o fato se concretizou: o Brazil, com z, vetou a entrada da Venezuela como país parceiro no BRICS.
O motivo seriam as famosas atas das eleições venezuelanas, devidamente apresentadas ao judiciário local e não ao brasileiro, que nada teria a ver com isso. Numa sequência de graves erros políticos, o veto à Venezuela é o ponto mais baixo da carreira política de Lula. A posição foi uma vergonhosa submissão ao imperialismo, em particular o norte-americano que esmaga a República Bolivariana há décadas com sanções econômicas. A entrada no BRICS seria uma forma importante de contorná-las, como certamente será para Cuba, que figurou entre os 13 novos parceiros do bloco anunciados em Kazan.
Mas não se trata apenas de mera submissão, a postura é completamente incongruente. Se uma denúncia de fraude eleitoral é motivo de veto, o que dizer de regimes políticos como a Arábia Saudita, onde nunca houve eleição? Ano passado, quando foi proposta a entrada do país no bloco, algo que ainda não se concretizou, não houve oposição brasileira. O que dizer da Bielorrússia, atacada mundialmente por ser “a última ditadura da Europa”, que teve sua entrada garantida este ano? Qual seria o critério brasileiro para o veto? Se for a “opinião pública” do imperialismo, certamente nenhum país do BRICS deveria se relacionar com o Brasil.
Para fora do bloco, o presidente ainda mantém relações com a Ucrânia de Vladimir Zelenski, que governa desde abril deste ano sem mandato chancelado por eleições. E “Israel”, cujo corpo diplomático declarou Lula persona non-grata após suas declarações óbvias sobre o genocídio do povo palestino. Em estranha reviravolta, nota oficial do governo brasileiro emitida este mês caracterizou o Hamas, que lidera a luta do povo palestino contra a brutal ocupação sionista, como “fanáticos religiosos” e, sem menção aos milhares de prisioneiros palestinos em “Israel”, pediu pela libertação dos reféns israelenses em Gaza.
Por que manter relações com o estado sionista e esgarçá-las com um país vizinho e amigo, como a Venezuela? No lugar de expulsar o embaixador de “Israel”, o governo brasileiro expulsou a da Nicarágua, país que, assim como a Venezuela, é alvo de constante agressão imperialista. Daniel Ortega declarou Lula persona non-grata em seu país? Não. Apenas pediu retratação sobre as recorrentes provocações do embaixador brasileiro – e bolsonarista – na Nicarágua.
Em coletiva de imprensa ao final da cúpula, o presidente russo Vladimir Putin deixou claro que não há consenso entre Brasil e Rússia sobre a situação venezuelana. O Brasil ainda não reconhece Nicolás Maduro (que esteve presente em Kazan) como legítimo presidente; a Rússia, por outro lado, reconhece e enxerga a Venezuela como um país que “luta por independência, por soberania”. Ao confirmar indiretamente que o Brasil havia vetado a entrada da Venezuela no BRICS, Putin disse considerar Lula “um homem muito decente e honesto” e esperava que o presidente brasileiro lidasse com a situação dessa maneira. Muito menos delicado com as palavras, o governo venezuelano emitiu declaração condenando a “agressão” brasileira e comparando acertadamente a postura do atual governo com a do anterior, de Jair Bolsonaro.
As charges em jornais anti-imperialistas, inclusive venezuelanos, expõem a impressão geral de que o presidente brasileiro e seus assessores transformaram-se em garotos de recado de Joe Biden. Fica claro que a política de conciliação, se teve resultados, ainda que precários, em 2002, não funcionará no mundo polarizado do terceiro mandato de Lula. A agressividade imperialista é cada vez maior – veja Gaza. Os oprimidos procuram se aproximar e organizar uma forma de defesa, de autopreservação. O “muro”, em que o governo brasileiro costumava se equilibrar, desabou. Cabe a Lula explicar a situação ao povo brasileiro para que não fique estabelecido que seu governo está a serviço do imperialismo na ofensiva colonial para isolar a Venezuela.