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Eleições municipais

Uma crítica identitária ao identitarismo da esquerda

Acadêmico chama identitarismo de "erro completo", mas usa os métodos identitários para atacar os "pobres de direita" do Sul e Sudeste

Em entrevista ao jornal golpista O Globo, o ex-presidente do IPEA durante o governo Dilma e atual presidente da UFABC Jessé Souza trouxe uma análise do resultado catastrófico colhido pela esquerda nas eleições municipais, aparentando criticar o identitarismo, mas enveredando pelas mesmas armadilhas que tenta atacar. Diz o acadêmico:

“O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, com o Bolsa Família.

No caso dos pobres de direita negros e evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que ‘nordestino é preguiçoso.’”

Souza faz uma distinção regional tão clara quanto identitária entre os trabalhadores do Sul e Sudeste e os do Norte e Nordeste, alegando que o racismo teria um papel central na adesão ao bolsonarismo nas regiões mais desenvolvidas. Ora, acaso nas regiões mais atrasadas não existem trabalhadores pobres e bolsonaristas?

Fosse o mundo real da forma como o acadêmico diz, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) não teria mais de 5,57 milhões de votos (51,03% dos votos válidos) no Norte e quase 10 milhões (mais de 30,7%) dos votos válidos do Nordeste. Por outro lado, na “racista” cidade de São Paulo, Lula obteve 3,67 milhões de votos, correspondendo a 53,54% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro, com quem supostamente os trabalhadores brancos paulistanos se identificam mais, teve 3,19 milhões de votos, 46,46%. Na Grande São Paulo, o petista recebeu apoio de 6,789 milhões de eleitores, contra 6,468 de milhões de votos dados a Bolsonaro.

É completamente fora da realidade, portanto, a “análise” de Souza quando diz:

“O lulismo ainda consegue tocar o eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de criminalização.”

Como o “pobre acima de São Paulo, mais mestiço”, como diz o acadêmico, “foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022” se na Grande São Paulo o presidente Lula teve mais votos do que em toda a região Nordeste junta? Trata-se pura e simplesmente do método identitário padrão, que ignora o mundo tal como ele é e usa uma interpretação tirada sabe deus de onde para justificar as ideias mais estranhas, mas de forma alguma inocentes.

Esse tipo de polarização regional e racial é exatamente o que alimenta divisões que beneficiam o interesse do imperialismo no enfraquecimento da unidade nacional. Ao propor essa dicotomia, Souza perpetua uma visão fragmentada do povo brasileiro e falsa. Sua “análise” em vez de construir uma luta contra o sistema de exploração por ele denunciado e unificar os trabalhadores para isso, estimula as diferenças internas e o pior, por meio de falácias.

Segundo o professor, o identitarismo seria um dos fatores que afastou os eleitores mais pobres da esquerda, por conta da falta de mobilização e trabalho de base, especialmente nas periferias. Contudo, suas colocações acabam por reforçar as mesmas divisões promovidas pelo identitarismo, sem abordar o verdadeiro problema: a falta de um programa orientado pela luta de classes, o que pode não ser percebido do ponto de vista teórico pela população, mas claramente é do ponto de vista prático, isto é, da defesa dos interesses dos trabalhadores e compreensão quanto ao choque inevitável que tal defesa acarretará com a burguesia.

“Passamos por um processo de idiotização das pessoas”, diz Souza, “e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade”, descrevendo sua experiência ao entrevistar pessoas nas periferias de São Paulo, afirmando que se deparou com um cenário “dominado pela Teologia da Prosperidade e o neoliberalismo reacionário”. Segundo ele, isso explicaria a adesão dos setores mais pobres da população ao bolsonarismo. O sociólogo ainda descreve esse fenômeno como resultado de uma ação planejada da direita, que teria enraizado sua influência nas periferias enquanto a esquerda abandonava esses espaços.

O professor se aprofunda ainda mais na sua crítica identitária, como se o problema da crise da influência da esquerda sobre os trabalhadores fosse a dominação ideológica da direita, afirmando para isso que “a direita conseguiu fazer o pobre se sentir valorizado e respeitado”. Onde entra nessa análise a política do governo? “É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT”, diz o acadêmico, mas qual a ilusão maior, a do governo ou a de quem identifica “um aumento real do salário mínimo” que a população não identificou.

Fosse verdade o que diz Souza, a família operária custearia os bens que precisa para a manutenção da existência e perceberia a melhora. Como os custos de vida galopam a uma velocidade que o salário não consegue acompanhar, todos os professores e petistas bem intencionados do mundo poderiam se unir para dizer aos trabalhadores, como faz Souza, que houve um “aumento real do salário mínimo”. O mundo material irá se impor e o custo de vida vai corroer o “aumento real”, levando o trabalhador a perceber que está sendo enganado e naturalmente, a se revoltar.

O sociólogo não percebe que o verdadeiro problema não é a suposta “idiotização” das massas populares, mas a hegemonia política da burguesia, expressa sobretudo na péssima política econômica do ministro Fernando Haddad, para quem aumentos meramente contábeis no salário mínimo são o bastante, claramente mais preocupado em manter o assalto dos bancos aos cofres públicos do que aumentar de verdade os ganhos dos trabalhadores. Isso é o que determina o comportamento eleitoral das camadas mais pobres, assim como o ressentimento com a esquerda.

As ideias dominantes, já ensinava no século XIX o revolucionário Friedrich Engels, são as ideias da classe dominante. Por isso mesmo é óbvio que os trabalhadores terão ideias direitistas. Ignorar essa realidade e culpar os trabalhadores por seu alinhamento com a direita é uma forma de desviar o foco da luta de classes, que deveria ser o eixo central de qualquer projeto de transformação social.

Ao fragmentar sua análise em questões regionais e morais, Souza contribui para o enfraquecimento da unidade dos trabalhadores e, assim, favorece os interesses do imperialismo. Se quiser reverter as derrotas sofridas e particularmente mais contundentes nas eleições municipais deste ano, a esquerda precisa abandonar o identitarismo de fato e se concentrar na luta pelo atendimento dos interesses materiais e reais dos trabalhadores.

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