“Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.”.
Existe uma forma tradicional de se dividir a obra de Machado de Assis em duas grandes fases.
Num primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram estabelecidas as bases do realismo-naturalismo literário em terras brasileiras.
Essa forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma ressalva.
Vistos todos os livros, de conjunto, é possível perceber todas as tendências intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição de escritor, como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo, sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado, extraindo elementos para a criação de um estilo próprio.
O próprio temperamento do escritor, expresso no seu trabalho como crítico de literatura, denota uma forte aversão a rótulos e roupagens literárias.
A sua crítica ao “Primo Basílio” (1878) de Eça de Queiroz, por exemplo, denota uma oposição à filiação indisfarçável do escritor português às tendências artística da época. Qualificou o livro como um “realismo exacerbado”, cuja protagonista Luísa parece pouco convincente, sem uma correspondência entre a sua inatividade perante a sua tragédia, a sua psicologia e a sua formação cultural.
Válido ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.
Aliás, iniciou sua carreira literária na imprensa como crítico de literatura a convite do poeta Francisco Otaviano no Correio Mercantil. Aos 21 anos, já conhecido nas rodas intelectuais cariocas, ingressou no “Diário do Rio de Janeiro” a convite de Quintino Bocaiúva onde deu prosseguimento ao trabalho de crítica. Seus dois primeiros livros, Crisálidas (1864) e Falenas (1870) são livros de poesia. Vale dizer que apenas chegou aos romances e aos contos, formas de expressão em que elevou ao mais alto grau os seus dons de escritor, de maneira relativamente tardia, ao publicar “Ressurreição” no ano de 1973, quando já era diretor assistente do Diário Oficial a convite de D. Pedro II.
Ou seja, a divisão entre “escritos de juventude” e “escritos de maturidade” não retrata bem o itinerário da produção do escritor fluminense, se considerando que os romances de caráter romântico já foram precedidos de todo um trabalho anterior de maturação intelectual.
Em todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de Assis passa por dois momentos bem diferenciados.
Poderíamos falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos românticos e sua obra tem um caráter mais convencional e previsível.
Dessa primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).
O divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista deu—se, como dito, a partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).
A partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua vez marcaram as obras de juventude.
A pouco verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou exigências sociais, é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias Póstumas.
Em ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.
A arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.
Num primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de um conformismo político.
Num segundo momento, essa descrição da vida terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais vigentes.
Neste marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao universo burguês citadino, e, frequentemente, desconsideram as desigualdades sociais e a principal chaga social da época: a escravidão.
Esse ponto de vista também é discutível.
Pode-se dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades – há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”.
Contudo, a partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o convencionalismo romântico cede passo às experimentações da nova literatura realista, que trouxe consigo um propósito de crítica social subjacente à forma irônica com que desnuda os interesses que movem os personagens. Se antes do seu mais famoso livro, já havia incidentalmente alguma reflexão em torno da questão social, na fase realista, temas candentes do período como a abolição da escravatura (1888), a proclamação da república (1889) e a visão social de mundo de uma burguesia brasileira em sua fase embrionária já se tornam parte das preocupações do escritor.
Memórias Póstumas de Brás Cubas
O mais conhecido romance de Machado de Assis foi publicado em folhetins entre março e dezembro de 1880 na Revista Brasileira para depois ser lançado em livro no ano subsequente.
Trata-se de um livro de memórias não escrito por um autor defunto, mas por um defunto autor; Brás Cubas, depois de morto, para matar o tédio da eternidade, assume o papel de artista para escrever as suas memórias, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.
O protagonista sai da vida trôpego, como alguém que sai tarde de um espetáculo.
Morre aos 66 anos, solteiro e sem filhos, numa tarde chuvosa de sexta feira, acompanhado por apenas onze pessoas, a maior parte delas indiferentes ao morto.
O discurso fúnebre, todo eloquente, foi feito por um “fiel amigo” a quem o falecido deitou vinte apólices. Apenas Virgília, uma amante que teve em vida, parece ter chorado a morte de Brás Cubas, porquanto, efetivamente, o falecimento de um solteirão de sessenta anos não se reveste exatamente da noção de um evento trágico.
Os capítulos são curtos, recheados de reflexões filosóficas e considerações de passagens da vida, não necessariamente estruturadas em ordem cronológica. Há, já aqui, uma proposta de experimentação formal, ao criar um romance fora da convencional estrutura linear, quando suas histórias tinham um começo, meio e fim.
Outro traço da obra que particularmente destoa da tradição romântica diz respeito às qualidades morais do protagonista.
Em oposição a qualquer ato de heroísmo, Brás Cubas carece de iniciativa e força de espírito para promover grandes realizações. É, em todos os sentidos, uma pessoa medíocre, não num sentido propriamente pejorativo, mas por nele estarem ausentes as qualidades que o distinguissem dos demais.
Na juventude, apaixona-se por Marcela, uma meretriz espanhola, com quem gasta muitos contos de réis da mesada do pai, comprando joias caras. É encaminhado a força para Coimbra, onde faz o curso de Direito, sem aprender nada do que fosse as fórmulas e a retórica.
Em retorno ao Brasil, é preterido ao cargo de deputado e ao casamento de Virgília por Lobo Neves. Leva uma vida de luxo, sem trabalho, sustentando-se com a herança deixada pelo pai.
Ao final da vida, consegue chegar a Deputado e seu mandato replica a referida personalidade medíocre e pífia: sua melhor proposta de lei, fundamentada num discurso rebuscado, era o de alteração do uniforme dos membros da guarda nacional para economia da fazenda e maior conforto dos cidadãos recrutados.
Pelo menos, no final da história, foi levado a um ato de maior ambição: criar o “Emplasto Brás Cubas”, um remédio para a cura do maior mal da humanidade, a hipocondria. Antes de concretizar o sonho, foi acometido por uma pneumonia que o levou a morte.
Foi um anti-heroi romântico não só pela mediocridade, mas também por uma consciência errática.
Suas escolhas e o seu discernimento moral são regidos da mesma forma com que o burguês calcula os seus lucros.
Essa perspectiva se expressa na sua teoria das janelas: quando um desconforto moral lhe aflige, abre-se uma janela que justifica a falta anterior.
Num certo dia, encontra meia dobra de dinheiro e, movido mais pela vaidade do que por um dever moral, leva-o ao Banco do Brasil, onde é louvado pela modéstia.
Num outro dia, encontra uma enorme soma de dinheiro abandonado na rua (desta vez, cinco contos de reis) e cria uma justificativa moral, transacionando consigo próprio, para justificar a não devolução dos cinco contos como fizera com a meia dobra:
“De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de falar de todas as cousas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; todavia não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Providência. Não podia ser outra cousa. Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim totalmente, numa praia, é necessário que… Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.
— Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra cousa assim… hei de ver…
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a cousa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.”.
Há, em Brás Cubas, a fisionomia completa da burguesia não aclimatada às condições de uma sociedade escravocrata como era o Brasil do século XIX.
Os lances heroicos da constituição da burguesia como nova classe dominante no bojo da Revolução Francesa, se expressa, aqui, na forma de uma paródia.
No seu livro “18 de Brumário”, ao tratar de Luís Bonaparte, Marx diz que a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Tomando-se como base Brás Cubas, um representante de uma burguesia extremamente minoritária, ociosa, que “não comprou o pão com o suor do rosto”, constituída num país agrário, amparada no modo de produção escravista, poderíamos dizer que essa “farsa” corresponde, aqui, a uma comédia.