No artigo A polarização entre a civilização e a barbárie é necessária, publicado no Brasil 247 no último dia 24, o diretor da Fundação Perseu Abramo e dirigente petista Alberto Cantalice faz uma defesa da polarização política, porém nos termos que se seguem:
“As grandes nações do mundo cresceram e se desenvolveram em ambientes polarizados. Historicamente, os exemplos são lapidares: os EUA com Republicanos e Democratas [grifo nosso], a Inglaterra com Conservadores e Trabalhistas, a Alemanha com a Social-Democracia, os Comunistas e o Nazismo, a China com os Comunistas e os Nacionalistas do Kuomintang, e na Itália, os Socialistas e o Fascismo. Só para ficar nesses exemplos.”
Naturalmente, um marxista tenderia a concordar que a polarização é positiva e apoiaria a colocação de Cantalice, se ela não tivesse uma pegadinha, que é o fato de o dirigente petista tratar como equivalentes a luta entre comunistas e nazistas, e entre republicanos e democratas. Ocorre que, se no primeiro caso temos uma polarização real entre a vanguarda da classe operária (os comunistas) e a “cartada final do imperialismo” (o fascismo), no segundo caso, a “polarização” é desprovida de substância social, refletindo apenas uma disputa interna da burguesia.
Os distintos setores da burguesia podem ter antagonismos que gerem algum nível de polarização, mas não refletem uma luta de interesses inconciliáveis. O que torna essa disputa um fenômeno secundário quando comparado à verdadeira polarização entre burguesia e proletariado.
Aqui, sim, temos uma polarização real, entre duas classes cujos interesses são antagônicos. A realização plena dos interesses da classe trabalhadora levaria ao fim da burguesia, enquanto o domínio burguês sobre a sociedade só pode ser mantido pela completa subjugação do proletariado.
A tentativa de Cantalice de equiparar essas disputas parece uma estratégia deliberada para ofuscar essa polarização fundamental, desviando a atenção da luta entre a classe trabalhadora e a burguesia tanto no cenário nacional quanto internacional. Ao tratar a polarização entre republicanos e democratas como equivalente à luta entre comunistas e fascistas, ele não só desconsidera as diferenças qualitativas entre esses conflitos, mas também reforça a falsa dicotomia que beneficia a burguesia imperialista.
Essa falsa equivalência serve para apresentar os democratas como uma força “progressista” quando, na realidade, eles são tão opressores quanto os republicanos. O Partido Democrata esteve por trás de inúmeras intervenções imperialistas e golpes de Estado, destruindo nações inteiras em nome da “liberdade” e da “democracia”, termos que mascaram seus reais interesses de dominação.
Se Cantalice realmente acredita que Donald Trump representa uma ameaça inédita e que Kamala Harris seria uma solução viável, ele precisa demonstrar ao mundo que a história está errada e o papel positivo que os democratas desempenharam historicamente. Precisaria mostrar que não foram os democratas que explodiram bombas atômicas no Japão, não foram eles que estupraram a Palestina, esquartejaram a antiga Iugoslávia, levaram países como a Líbia à Idade da Pedra e aprofundaram a criminosa Guerra ao Terror, torrando trilhões de dólares para assassinar milhões de árabes e africanos.
A retórica que demoniza Trump e exalta Harris omite que ambos são defensores do imperialismo norte-americano, responsáveis pela exploração e opressão dos povos ao redor do mundo, com a diferença de que a segunda representa justamente o setor mais poderoso e criminoso. É completamente fora da realidade sugerir que a ascensão de Kamala Harris mudaria substancialmente a política imperialista dos EUA, salvo no pior sentido possível dessa mudança.
O dirigente petista, no entanto, continua:
“A ascensão de Donald Trump, antecedido pela campanha pelo Brexit, na Inglaterra, mostrou a nova faceta da direita extremada: a produção de notícias falsas, as chamadas fakes News, em escala industrial.”
Se Cantalice realmente acredita que Donald Trump representa uma ameaça inédita e absoluta, enquanto Kamala Harris seria uma solução viável para a classe trabalhadora, é necessário questionar se ele também aceitou as mentiras contadas por esses mesmos democratas. Será que ele também acredita que os militares em 1964 salvaram o Brasil de uma “ditadura comunista”? Será que ele aceita o argumento de que Dilma Rousseff foi corretamente afastada por crimes fiscais sabidamente mentirosos? Ou ainda, será que ele acha que Lula de fato recebeu um triplex no Guarujá e um sítio em Atibaia com uns pedalinhos em troca de favores a empreiteiras? Cantalice parece acometido por uma amnésia, mas a história não deixa dúvidas: as mentiras mais devastadoras para a classe trabalhadora brasileira foram criadas pelos democratas e não pelos republicanos.
Ao posicionar-se como defensor de uma falsa polarização, Cantalice, na prática, desidrata a polarização que realmente importa: a luta entre a burguesia exploradora e o proletariado explorado. Ao canalizar as energias da classe trabalhadora para uma disputa interna da burguesia, ele enfraquece o movimento operário, deixando o verdadeiro inimigo, o imperialismo, fora de foco.
A defesa velada dos democratas como alternativa ao fascismo de Trump, em particular Kamala Harris, insere o artigo de Cantalice no jogo de legitimação dessa disputa burguesa. Contudo, o que ele apresenta como uma escolha entre civilização e barbárie é, na realidade, uma disputa entre dois setores da mesma classe opressora. Harris, representante do capital financeiro e das grandes corporações que controlam o Partido Democrata, jamais representará os interesses da classe trabalhadora.
Ao seguir essa linha, Cantalice fortalece, inadvertidamente, o próprio fascismo que ele diz combater, uma vez que o “progressismo” de Harris não passa de uma armadilha. Se essa estratégia for levada adiante, a consequência será a ampliação do espaço para o crescimento da extrema direita, que se alimenta da política econômica.
Dessa forma, o artigo de Cantalice não só confunde o que deveria ser uma análise clara da polarização de classes, mas também contribui para o fortalecimento dos piores opressores. Ao desviar os trabalhadores de seus verdadeiros interesses, ele acaba colocando-os a serviço daqueles que, disfarçados de “civilizados”, perpetuam a dominação imperialista.