Publicado no jornal Folha de S. Paulo, o artigo Instituições contramajoritárias: o joio e o trigo nas críticas às Supremas Cortes, escrito pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marcus André Melo, traz uma curiosa colocação, de que “o risco maior na América Latina é a tirania da maioria, não da minoria”. Diz ele?
“O debate em torno dos limites entre democracia e constitucionalismo —entre a regra da maioria e proteção de direitos— é legítimo (o debate sobre “a dificuldade contramajoritária” é clássico). No entanto, a crítica ao protagonismo de “juízes não eleitos” —recorrente no discurso populista, independente de coloração política— é problemática porque mistura meias verdades e argumentos descabidos.”
Ora, constitucionalismo e o que Melo chama de “democracia” (aqui, entendido como sinônimo de um regime democrático, onde a maioria decide), não são princípios contraditórios. Do ponto de vista teórico, é possível um regime político orientado por limites constitucionais à atuação do Estado e também o que o autor chama de “democracia”, aqui, compreendida como “o governo da maioria”. Do ponto de vista teórico apenas, dado que, na prática, o Estado tem dono, a burguesia, uma classe social que jamais irá abdicar da manutenção de sua ditadura.
Antes disso, é importante destacar que, ao colocar o que chama de “instituições contramajoritárias” em oposição à “tirania da maioria”, o que Melo defende sem a coragem de dizê-lo explicitamente é uma supremacia dos “contramajoritários” (isto é, da minoria) em relação aos “majoritários”, a maioria. A ditadura dos contramajoritários é um contra-senso, que, posto em prática, tende a levar a sociedade que o aplica à liquidação. Exemplos disso não faltam. A ditadura do apartheid que vigorou por décadas na África do Sul, a Ditadura Militar brasileira (1964-1985) e inúmeros outros exemplos de regimes dedicados a combater os “contramajoritários” demonstram o que significa, na prática, o desfecho do embate velado proposto por Melo. O professor continua:
“Sim, líderes populistas que contam com maiorias legislativas abusam do poder. Chavez é o arquétipo, o Senado mexicano acaba de aprovar uma emenda Constitucional do presidente populista de esquerda para a eleição de juízes por uma maioria de mais de 2/3, com perda do cargo dos atuais magistrados.”
Ora só os líderes populistas “abusam do poder”? Quando um Michel Temer que é tudo menos popular entrega estatais e campos de petróleo para o imperialismo, à revelia do povo brasileiro, isso é menos abusivo? Quando um general da Ditadura Militar ordena torturas e execuções, ele não tá cometendo abusos? Quando FHC condena uma média de 300 crianças brasileiras à morte por inanição, devido ao seu neoliberalismo radical atento aos interesses de banqueiros “contrajamoritários”, o tucano “abusa menos do poder”? Trata-se, claramente, de uma falácia. Se “líderes populistas ‘abusam do poder’”, burocratas não eleitos abusam infinitamente mais, justamente porque não precisam prestar contas ao povo posteriormente.
Ainda, o autor apresenta a essência de todo o debate que é justamente o problema do povo escolher os juízes. Volta-se o problema sobre o que seria mais democrático: o povo escolher seus representantes no Judiciário ou deixar uma burocracia controlar o poder.
Uma das principais heranças da Revolução Francesa na Constituição Federal (1988) está contida na frase “todo poder emana do povo”. Melo, no entanto, é contra. Em sua defesa, argumenta:
“Mas na Colômbia, foi uma Suprema Corte independente que barrou a reeleição de Álvaro Uribe (2002-2010), que contava com amplo apoio legislativo e popular. A corte julgou inconstitucional seu plano de reeleição para um terceiro mandato. Ao assumir a cadeira presidencial Uribe havia proposto um referendum para destituir os membros do congresso, e criar um parlamento unicameral de tamanho reduzido. Atualmente está no banco dos réus sendo julgado por abuso de poder.”
O que o acadêmico destaca como uma virtude é exatamente o motivo pelo qual o Judiciário não pode ser um órgão burocrático, porque ele vai influir na luta política e sem nenhuma preocupação com a população, a pretexto de combater “abusos”, o que é em si um abuso. Não é, no entanto, um abuso qualquer e aleatório, mas fruto do interesse fundamental da burocracia judicial, de defender a única minoria que realmente defendem, que é a classe dominante e no caso dos países atrasados, o imperialismo. Isso fica ainda mais claro quando Melo diz:
“Não há escassez de exemplos bizarros que levam a críticas legítimas. O último deles é a decisão do ministro Flávio Dino, que numa canetada monocrática determinou ações de combate a incêndios a serem cumpridas pela Polícia Federal, especificando o uso de fundos para tal, e ao tempo em que autorizou gastos ao arrepio do arcabouço fiscal. Como se membro do poder Legislativo e Executivo fosse.”
Chama atenção a contradição no argumento de Melo, que destaca como positivo a intervenção da ditadura judicial colombiana sobre os poderes representativos daquele país, e como negativo a intervenção da ditadura judicial brasileira sobre os poderes representativos daqui. O mesmo caso, mas que, conforme o sabor dos interesses imperialistas, a coisa muda. O que não muda é que o interesse de uma minoria opulenta, corrupta, opressora e criminosa consegue prevalecer sobre os interesses da maioria oprimida.
Esse componente social é o que Melo escamoteia, por uma malandragem. Não é um regime onde os direitos da população são respeitados o que mobiliza a defesa dos “contramajoritários”, mas aos “majoritários” trabalhadores e que jamais seriam controlados sem a repressão da burocracia estatal, eufemisticamente chamada aqui de “instituições contramajoritárias”.