No artigo Uma mulher presidenta dos Estados Unidos?, publicado no Brasil 247, Leonardo Boff defende que uma eventual eleição da candidata democrata Kamala Harris ao cargo de presidente dos Estados Unidos, nas eleições marcadas para novembro, “representaria um passo decisivo rumo a um novo paradigma”. “O fato provável de uma mulher, Kamala Harris, se tornar a presidenta do país mais poderoso do mundo, representaria um passo decisivo rumo a um novo paradigma de cooperação entre os sexos, incluindo também a natureza da qual ambos são parte”, diz Boff, acrescentando por fim que essa cooperação “é o que se espera para o futuro, caso este ainda possa existir”, uma colocação um tanto moralista e que desconsidera a maior ameaça ao futuro, que reside justamente na chefia do Estado imperialista mais poderoso do mundo. Defendendo sua política, o teólogo diz:
“Os EUA, independentes desde 1776, tiveram 44 presidentes, todos homens e nenhuma mulher. Como já foi assinalado por outros, muitos encaram o presidente exclusivamente como o chefe das Forças Armadas, aquele que pode usar o telefone vermelho e apertar o botão para deslanchar uma guerra nuclear. Poucos o consideram como o promotor do bem comum, deixado à própria sociedade, de viés privatista, mas com um sentido comunitário muito forte.
Por isso os EUA vivem fazendo guerras por todas as partes. Praticamente todos os presidentes, inclusive Barack Obama, se sentem imbuídos do ‘destino manifesto’, a crença (imaginária) de que os Estados Unidos são ungidos como ‘aquele novo povo de Deus com a missão de levar a democracia (burguesa), os direitos humanos (individuais) e a liberdade (do mercado) para o mundo’.”
É quase como se o mundo estivesse errado em “encarar o presidente dos EUA” como um comandante militar “exclusivamente”. A que se dedicaram todos os predecessores do atual presidente, o democrata Joe Biden, nos últimos cem anos? A que outra tarefa se dedicou o próprio governo atual, do qual Kamala Harris faz parte?
Não é como se uma loucura tivesse acometido o mundo e Boff fosse a personagem de Ensaio sobre a Cegueira poupada da epidemia de cegueira que assolou a humanidade, a única pessoa a enxergar em um meio no qual ninguém consegue ver. A percepção social do verdadeiro papel do presidente dos EUA é apoiada na experiência empírica, oriunda de décadas de uma política de rapina e guerra contra os povos oprimidos, dentro e fora do país.
Até o momento, Kamala Harris foi um importante instrumento dos inimigos internos do imperialismo, a população pobre e explorada dos EUA, em especial o povo negro, duramente reprimidos pela promotora-carrasco, que demonstrou, na prática, a falácia do argumento identitário de que o fato de ser mulher, negra, filha de imigrantes a tornaria mais propensa a uma política humanitária. Seja massacrando os negros norte-americanos, seja em seu emblemático “não venham” aos milhares de oprimidos da América Central que tomados pelo desespero, marchavam a pé para os EUA em busca de condições de vida melhores, a realidade prova rotineiramente que os que se valem dos preceitos identitários tradicionais para galgarem postos, apresentam uma forte tendência a serem ainda mais desumanos.
O “empoderamento” de oportunistas oriundos dos grupos oprimidos, no entanto, pode ser observado com Barack Obama (como Boff lembra, inclusive) e na trajetória de Harris, traduz-se em uma política ainda mais criminosa no ataque aos oprimidos e no assalto do povo para os banqueiros, e demais setores do conjunto principal da burguesia norte-americana.
Após digressões sobre patriarcado e outras pérolas identitárias, Boff defende que “agora surge a chance de uma mulher mestiça, Kamala Harris, chegar ao centro do poder imperial como presidenta”, o que para o religioso, “significaria o empoderamento da identidade e da autonomia relacional das mulheres”, conclui. Por toda a campanha feita e a disposição em ser louca demonstrada por Harris, no entanto, o único empoderamento real com uma vitória da candidata é o do imperialismo, que no tabuleiro internacional, com a OTAN se expandindo para cercar não apenas a Rússia, mas também a China e o Irã, significa um passo decisivo rumo a uma guerra de proporções inéditas desde a Segunda Grande Guerra. Para alguém que dúvida se poderá haver “futuro” para a humanidade, é difícil caracterizar a posição de Boff, se o interesse dele é apressar a catástrofe ou é apenas alguém tirando ideias da cabeça sem calcular direito as consequências do que está defendendo.
Todas as considerações de cunho moral de Boff caem como uma luva para a campanha do imperialismo em defesa de sua principal candidata. Repetem o que a propaganda imperialista busca massificar em todo o mundo, o que serve para fins muito além dos objetivos eleitorais, como pode ser observado na fracassada chantagem pela mulher negra no STF. O fato de o teólogo repetir essa propaganda evidencia a profundidade da submissão política da esquerda pequeno-burguesa aos piores inimigos dos trabalhadores e de todos os povos oprimidos do planeta.