Quando Carlos Drummond de Andrade publicou “Claro Enigma” (1951) já havia percorrido uma longa trajetória como poeta.
Seu primeiro trabalho publicado, chamado “Alguma Poesia” (1930), foi lançado vinte anos antes; e, considerando-se que esse primeiro livro consistiu numa compilação de versos já publicados na imprensa, pode-se dizer que transcorreram quase três décadas de experiência e maturação até o livro que nos ocupamos de resenhar.
Poderíamos dizer que “Claro Enigma” (1951) é um livro de maturidade do poeta de Itabira.
Não no sentido de que as obras anteriores sejam reconhecidas como trabalhos de menor qualidade, livros de juventude, frutos de uma percepção ingênua da realidade. Mas por expressar uma ruptura com o experimentalismo típico do movimento modernista de suas primeiras obras e, especialmente, com o desencanto da política e do horizonte ideológico socialista, prenunciado na obra que o consagrou com o maior poeta brasileiro, “A Rosa do Povo” (1945).
Por marcar uma ruptura em relação às obras anteriores, faz-se necessário recapitular o itinerário do escritor para melhor caracterizar o “Claro Enigma”. (1951).
O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.
Em “Alguma Poesia” (1930) vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em “Macunaíma” (1928) de Mário de Andrade, por sinal, amigo e incentivador de primeira hora do poeta mineiro.
Em “A Rosa do Povo” (1945) escrito apenas seis anos antes de “Claro Enigma” (1951), o horizonte modernista sofre a influência da conjuntura política do pós-guerra. A derrota do Nazi-fascismo e a democratização do país com o fim da Era Vargas criam as condições para um alinhamento de diversos intelectuais ao socialismo, o que significava, àquele momento, ao Partido Comunista Brasileiro.
Já na Constituinte de 1946, o PCB elegeu nada menos do que 14 deputados, um deles o escritor baiano Jorge Amado. Outro escritor modernista que aderiu ao partido, após algum tempo de prisão durante o estado novo, foi Graciliano Ramos. E o próprio Carlos Drummond de Andrade, ao tempo de “A Rosa do Povo”, também se aproximou do Partido Comunista. No mesmo ano de 1945, o poeta deixa a chefia de gabinete de Gustavo Campanema, interventor em MG, e, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como co-editor do diário comunista “Tribuna Popular”.
Não seria difícil de supor que a sensibilidade do poeta logo iria entrar em choque direto com o dogmatismo do PCB que, desde a sua fundação em 1922, atuou como uma sucursal do partido soviético presidido por Joseph Stálin.
Em pouco tempo abandonou a “Tribuna Popular”. E, nas obras subsequentes ao “A Rosa do Povo” (1945), vai se notando um desencantamento que também refletia as circunstâncias histórias daquela conjuntura: aos poucos, o otimismo em torno da vitória da democracia do pós guerra vai sendo desconstituído pela Guerra Fria e o recrudescimento das hostilidades entre EUA e URSS.
Com a morte de Stálin, seu sucessor Nikita Kruschev, no XX Congresso do PC (1956), apresenta um relatório denunciando seu antecessor, o que levaria diversos grupos políticos a romperem com a orientação soviética. O desencanto de alguns, como Carlos Marighella, levaram à ruptura pela esquerda, com a defesa da revolução armada, sob o impacto e influência da guerrilha cubana. E, no caso de Drummond, a nova conjuntura o conduzirá a um novo estilo de poesia.
Nas obras anteriores, os poemas revelam o desejo de formular respostas, enquanto em “Claro Enigma” o que se busca é a formulação de perguntas. Nos seus poemas de antes imperava a liberdade formal e a oralidade. Já em “Claro Enigma” o autor retoma a preocupação com a metrificação do poema e elabora sonetos.
A nova orientação em torno de uma poesia mais formal se revela na dedicatória que o escritor faz a Américo Facó, um estudioso da língua portuguesa, para quem Drummond encaminhou os poemas para análise, antes da publicação.
E, no que toca aos propósitos da obra, ainda na introdução, o poeta cita uma frase de Paul Valéry que diz “os acontecimentos me aborrecem”.
A frase de abertura já denota uma mudança de orientação.
Em “A Rosa do Povo” e obras anteriores, a poesia gira em torno do imediato, faz descrições de acontecimentos que sugerem uma sucessão de imagens que remetem às cenas de cinema:
“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu (“A Flor e a Náusea”)
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel? (“Cota zero”)
Em “Claro Enigma”, os acontecimentos são substituídos pela contemplação, sem a imediata preocupação (política) do agir:
“Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
Nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
E olho para os pés dos homens, e cismo.
Escultura de ar, minhas mãos
Te modelam nua e abstrata
Para o homem que não serei.” (Contemplação no banco).
Nos poemas de maturidade há a aceitação dos limites da expressão poética por conta da não tangibilidade da realidade. Os versos fazem remissão ao sonho embaralhado com a realidade. Há a predominância da incredulidade, da melancolia e do niilismo.
A natureza metafísica da poesia se revela numa conversa do poeta com o fantasma no poema “Perguntas”:
“Numa incerta hora fria
Perguntei ao fantasma
Que força nos prendia,
Ele a mim, que presumo
Estar livre de tudo
Eu a ele, gasoso,
Todavia palpável
Na sombra que projeta
Sobre meu ser inteiro: (…)”.
Não seria exato, contudo, dizer que a poesia de “Rosa do Povo” é engajada e politicamente comprometida e a poesia de “Claro Enigma” seria uma ruptura total com os escritos anteriores.
A complexidade e as nuanças da poesia de Drummond não autorizam nem remotamente uma percepção assim tão esquemática. E o escritor, em todo o caso, jamais poderia ser considerado como um panfletário de esquerda. Há ainda elementos de continuidade que informam todas as fases do escritor.
Em todo o trabalho do poeta mineiro verifica-se uma profunda e comovedora sensibilidade, seja ao formular perguntas filosóficas ou descrever acontecimentos. Essa sensibilidade possibilita criar um forte laço de intimidade com o leitor. As emoções do poeta são deflagradas pela experiência diante dos sentimentos do mundo, nome que dá título a uma das suas obras. A ironia e o humor também perpassam as diversas fases do escritor. E, na construção da arte, a poesia, de fato, nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma. Como diz um poema de seu primeiro livro:
Poema
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira. (“Poesia”).