No terceiro artigo da série Kamala Harris e a esquerda, apresentamos os valiosos ensinamentos do revolucionário alemão Wilhelm Liebknecht para identificar corretamente os aliados e os inimigos dos trabalhadores.
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No folheto Nenhum compromisso, nenhum acordo eleitoral, publicado em 1899, Liebknecht apresenta um método simples: o socialismo científico é a única ideologia revolucionária. Tudo aquilo que não tiver como fim a destruição da ordem vigente para o estabelecimento da ditadura do proletariado será, na melhor das hipóteses, uma política diversionista, uma política cujo resultado será a confusão política.
“Piedade da pobreza, entusiasmo pela igualdade e pela liberdade, reconhecimento da injustiça social e desejo de removê-la, não é socialismo”, explica o revolucionário. “Condenação da riqueza e respeito pela pobreza, como encontramos no Cristianismo e em outras religiões, não é socialismo”.
Se nem isso é socialismo, uma candidatura como a de Kamala Harris, não seria, de forma alguma, socialista. E, portanto, segundo os critérios do revolucionário alemão, serviria apenas para confundir os trabalhadores no que diz respeito ao seu verdadeiro programa.
O problema da candidatura de Kamala Harris, no entanto, vai muito além de não ser socialista. Quando Liebknecht critica aqueles que simplesmente apresentam um “entusiasmo pela liberdade”, ele está criticando o oportunismo. Isto é, a política daqueles que falam em nome dos interesses dos trabalhadores, mas que agem sempre no sentido de colocá-los a reboque de seus inimigos.
Essa é, precisamente, Kamala Harris.
Em seu recente discurso feito em Atlanta, no dia 30 de julho, Harris apresentou todas as características de um farsante.
“Como muitos de vocês sabem, antes de ser eleito vice-presidente e antes de ser eleito senador dos Estados Unidos, fui eleita procuradora-geral e promotora distrital. E, antes disso, fui promotora penal. Então, nesses papéis, enfrentei perpetradores de todos os tipos: predadores que abusam de mulheres, fraudadores que enganavam consumidores, trapaceiros que quebravam as regras para seu próprio ganho (…)”
“Acreditamos em um futuro onde cada pessoa tenha a oportunidade de construir um negócio, possuir uma casa, construir riqueza intergeracional. Um futuro com assistência médica acessível, cuidado infantil acessível, licença remunerada (…)”
“Nossa luta é pelo futuro e pela liberdade, e não preciso dizer às pessoas de Atlanta que gerações de americanos antes de nós lideraram a luta pela liberdade. E agora, o bastão está em nossas mãos, cada um de nós. E nós amamos nosso país, nós amamos nosso país, e acredito que é a mais alta forma de patriotismo lutar pelos ideais do nosso país (…)”.
Baseado em seu discurso, poderíamos concluir que Kamala Harris é a pessoa mais bem intencionada do mundo. Ela quer a liberdade, quer cuidar dos pobres, quer justiça social… O que, então, a caracteriza como uma falsa amiga dos trabalhadores?
O leitor mais atento à situação política contemporânea responderia: “Harris é uma farsante porque apoia os crimes de ‘Israel’ na Faixa de Gaza; jamais a classe operária teria como aliada uma assassina de mulheres e crianças”. E não estaria errado.
Liebknecht, no entanto, apresenta uma resposta mais profunda e mais geral, que serve a todas as situações: “o socialismo moderno é filho da sociedade capitalista e seus antagonismos de classe. Sem estes, o socialismo não poderia existir”. Dito de outra forma, o programa de luta dos trabalhadores é indissociável dos antagonismos de classe. Não há como fazer esse programa avançar sem que esses antagonismos se desenvolvam. “Quem alcançou plena consciência da natureza da sociedade capitalista e da base do socialismo moderno, também sabe que um movimento socialista que abandone a base da luta de classes pode ser qualquer outra coisa, mas não é socialismo”, sublinhou o revolucionário alemão.
O que torna Kamala Harris uma incontestável inimiga disfarçada de amiga é o fato de que seu compromisso com os mais desfavorecidos não vai além de uma declaração de intenções. O que Kamala Harris tem a dizer sobre a ditadura dos bancos sobre toda a sociedade norte-americana? O que ela tem a dizer sobre a repressão policial? O que ela tem a dizer sobre a ingerência dos Estados Unidos na economia e na política de todos os outros países do planeta? Não é à toa que esses assuntos não aparecem em seu discurso. E se aparecesse, seria obrigada a dizer: “darei ainda mais poderes aos bancos, pois eles que me financiam, tornarei a polícia ainda mais violenta, pois é a única forma de impor a minha política impopular e irei manter a ingerência sobre todos os países possíveis porque essa é a única forma de sustentar a farra dos meus patrocinadores”.
Corretamente, Liebknecht irá concluir que a luta de classes “é o principal ponto de ataque na batalha que a economia política burguesa está travando com o socialismo”. Sem o caráter de classe de um partido revolucionário, a burguesia “faria do movimento operário apenas uma parte dos movimentos partidários burgueses”, e do partido revolucionário, “apenas uma divisão da democracia burguesa”. A economia política e a política burguesas dirigem todos os seus esforços contra o caráter de classe do movimento operário moderno.
Liebknecht dá tanta atenção a esse problema que afirma categoricamente:
“Se for possível criar uma brecha, então a Social Democracia [o partido revolucionário] estaria conquistada, e o proletariado, jogado de volta sob o domínio da sociedade capitalista. Por menor que seja tal brecha no início, o inimigo tem o poder de ampliá-la e sairá vencedor.”
Neste momento, o revolucionário alemão apresenta a sua mais famosa formulação da obra em questão: quando diz que o falso amigo é pior que o inimigo declarado.
“O inimigo é mais perigoso quando vem como amigo para a fortaleza, quando se esgueira sob o manto da amizade e é reconhecido como amigo e camarada.
O inimigo que vem até nós com viseira aberta enfrentamos com um sorriso; pôr nosso pé sobre seu pescoço é uma brincadeira para nós. Os atos de violência estupidamente brutais dos políticos policialescos, os ultrajes das leis antissocialistas, as leis antirrevolucionárias, os projetos de penitenciárias – estes apenas despertam sentimentos de desprezo piedoso; o inimigo, no entanto, que nos estende a mão para uma aliança política e se intromete como amigo e irmão – a ele e somente a ele temos que temer.
Nossa fortaleza pode resistir a todos os assaltos – não pode ser invadida nem tomada por cerco – só pode cair quando nós mesmos abrimos as portas para o inimigo e o aceitamos em nossas fileiras como um camarada. Crescendo a partir da luta de classes, nosso partido repousa na luta de classes como condição de sua existência. Através e com essa luta o partido é invencível; sem ela o partido está perdido, pois terá perdido a fonte de sua força. Quem não entende isso ou pensa que a luta de classes é uma questão morta, ou que os antagonismos de classe estão gradualmente sendo apagados, está sobre a base da filosofia burguesa.”