Se há uma verdade na história, é que a burguesia manipula os fatos de acordo com seus interesses. Logicamente, é assim, também, na arte.
Conhecido principalmente pelas suas obras nas artes plásticas, Salvador Dalí nasceu na cidade de Figueres, na Catalunha, em 11 de maio de 1904, há 120 anos. Ao contrário de muitos artistas que completaram aniversários importantes, Dalí recebe muitas homenagens.
No Brasil, em particular em São Paulo, acontecem exposições e eventos comemorativos durante o ano todo. Os jornais capitalistas divulgam tais eventos e falam exaustivamente sobre o “artista surrealista” e sua obra, normalmente em tom elogioso. Comparativamente, tal cobertura não foi dedicada até mesmo a artistas da mesma fama que Dalí.
Esse contraste chama atenção. Na época em que tudo é motivo para o “cancelamento”, que é um jeito moderninho de censurar, é muito suspeito que uma personagem como Dalí, simpatizante do fascismo, apoiador de Francisco Franco na Espanha e que nunca voltou atrás em suas posições políticas, não seja minimamente cancelado.
No ano passado, comemoraram-se 150 do nascimento de Pablo Picasso, artista cuja importância é incomparavelmente maior do que a de Dalí. Picasso, que sempre repudiou o fascismo, um artista de caráter progressista, tendo, inclusive, se filiado ao Partido Comunista em determinado momento de sua vida; foi alvo de uma série de ataques e cancelamentos por um suposto mau comportamento com as mulheres.
Monteiro Lobato, grande escritor brasileiro, é cancelado porque identitários histéricos inventaram que sua obra seria racista.
São inúmeros casos de artistas ou personagens históricos cancelados porque alguém disse alguma coisa sobre a sua vida, poucas vezes verdades, muitas vezes mentiras.
Porém, no caso de Dalí, cuja simpatia e apoio ao fascismo é aberto e conhecido, isso não acontece.
Não somos a favor da ideia de que um artista e sua obra devam ser excluídos simplesmente por conta de suas ideias, modo de vida ou posições políticas, como fazem os identitários. Mas é muito suspeito que Dalí passe despercebido diante desses histéricos justiceiros tão prontos a condenar qualquer um ao fogo do inferno da inquisição identitária.
O que explica a diferença de tratamento é muito simples. Só é cancelado quem o imperialismo quer que seja. É a prova de que a ideologia identitária e a chamada cultura do cancelamento não têm nada de progressistas, são políticas reacionárias impulsionadas pelo imperialismo.
E o caso de Dalí é ainda mais grotesco. Ele é apresentado como se fosse a cara do movimento surrealista, como se fosse o seu principal artista, o que é uma falsificação completa da realidade.
Salvador Dalí se aproximou do surrealismo, fundado por André Breton e outros grandes artistas, mas sequer está entre os principais nomes desse movimento. Mais ainda, Dalí foi expulso do movimento justamente por não respeitar as principais diretrizes do surrealismo. Sem entrarmos no mérito dos dogmas próprios de qualquer escola ou movimento artístico, fato é que é uma falsificação histórica grotesca apresentar Dalí como o grande surrealista.
E tem mais, Dalí foi reconhecido por Breton como um venal, a ponto de Breton ter cunhado um anagrama com seu nome: “Avida dólares”, que pode ser traduzido como “Ávido por dólares”.
Não é apenas um problema da simpatia de Dalí pelo fascismo. Os futuristas italianos, por exemplo, eram fascistas, incluindo Marinetti, o fundador do movimento. Esse fato por si só não exclui a importância do futurismo como grande movimento artístico. Mas o caso de Dalí não é apenas sua posição política. Como bem denunciou Breton, Dalí era um artista venal, ávido por dinheiro, e isso obviamente se refletia na qualidade de suas obras. Ou seja, apesar de ser tecnicamente um bom artista, boa parte de suas obras, no que diz respeito à criatividade, são pobres, seguem um esquema e um modelo pronto, o que vai contra tudo o que o surrealismo defendia.
Para a burguesia, Salvador Dalí é o melhor tipo de artista, por isso, não há propaganda negativa. O problema são os artistas progressistas, esses, se falaram um palavrão em algum momento, podem ser condenados pela inquisição moderna.