No último domingo, 30 de junho, a Folha de S.Paulo publicou um artigo de opinião intitulado “Somos capazes de planejar?”. A peça é assinada por três urbanistas, Luiz Afonso Senna, Homero Neves Da Silva e Philip Yang, que comentam as enchentes no Rio Grande do Sul indicando um problema “de governança” sem, é claro, apontar o governo estadual como responsável. Vejamos o que dizem os autores:
“Passadas oito semanas da tragédia no Rio Grande do Sul, parece cada dia mais evidente que tivemos muito mais um problema de governo que de planejamento. Os diques, muros de contenção hidráulica, sistemas de bombeamento avançados e comportas hidrodinâmicas de Porto Alegre, concebidos há décadas, são demonstrações robustas da nossa contínua capacidade de planejar“.
O aparente direcionamento da responsabilidade para o governo estadual, de Eduardo Leite (PSDB), e para os governos municipais da direita, no primeiro parágrafo, logo é modificado no segundo:
“Por outro lado, os eventos trágicos do final de abril testemunham nossa incapacidade de governar. Ao olharmos para o futuro, sabemos portanto que, para derrotarmos uma nova catástrofe, temos que criar mecanismos de governança e de gestão para mobilizarmos a capacidade técnica disponível, tendo a reconciliação como princípio, a recuperação como objetivo e o desenvolvimento como fim” (grifos nossos).
Ou seja, a culpa pela destruição no Rio Grande do Sul seria nossa. Não do governador, nem de outro político ou instituição responsável por governar o estado e os municípios, mas nossa. Uma farsa. Ela, porém, é incrementada quando se fala em mobilizar a capacidade técnica. Finalmente, como apontado no próprio artigo, os meios técnicos estavam lá, simplesmente que não receberam manutenção, fruto da política neoliberal, símbolo da qual é o governador Eduardo Leite (PSDB). Logo em seguida, se fala em reconciliação, mas por que esse termo? Reconciliar com quem? Ora, é claro, aqui se quer dizer uma reconciliação entre o povo submerso, que perdeu tudo, e seus governantes, verdadeiros monstros que mantém até hoje a população desamparada.
A tal recuperação nada mais é do que uma aceitação tácita do ocorrido como algo “natural”, e o retorno ao dia a dia para os trabalhadores, apesar de terem perdido tudo. O mesmo sentido que o chamado “desenvolvimento”. Os autores fazem um chamado aos afogados a se abraçarem com os afogadores, uma perfídia. A verdadeira abominação que é tal proposta é ainda desenvolvida, numa clara defesa do mesmo projeto neoliberal que originou a catástrofe, e mascarada com uma verborragia cujo único objetivo é disfarçar a causa política dos alagamentos:
“Paz, unidade e acordo político são pilares da recuperação. Institucionalidade –com flexibilidade e transparência– é forte preditor de sucesso. Improviso e baixa institucionalização de processos redundam em perdas certas, humanas e materiais. Participação social é fundamental. Acesso a expertise testada faz a diferença. Ação deve ser pautada por diagnóstico, desenho de projetos e execução técnica sem interferências políticas“.
Os termos tecnocráticos se repetem ainda em outros parágrafos, procurando apresentar um problema como de expertise, de aplicação de pessoal. Nada está mais longe da verdade, o que se observa pelos grotescos cortes na defesa civil do estado, ou no emprego da polícia militar do RS para remover pessoas de imóveis, quando estas perderam suas casas e bens, e buscam apenas se abrigar. Pior, defendem um incremento na política neoliberal:
“As estruturas atuais impedem a mobilização e integração dos quadros qualificados do serviço público e a contratação da competência presente no mercado e na academia. As disputas partidárias agravam essa fragilidade institucional e dissipam recursos em um momento que exige união de esforços“.
Com a primeira parte, buscam indicar que seria necessário por fim ao serviço público como existe hoje, e substituí-lo pela competência presente no mercado, ou seja, por empresas parasitas do Estado, que receberão verbas para mal cumprir com funções hoje sucateadas pelo governo estadual (com o propósito de privatizações e outras medidas do tipo). A segunda parte apontam para o não questionamento das políticas do governo estadual, causador da tragédia, e que segundo os autores e a Folha deveria ser apoiado em sua sanha contra a população trabalhadora do Rio Grande do Sul.
“A criação de uma Autoridade Interinstitucional para Recuperação e Desenvolvimento (ARD) parece ser necessária num contexto de impasse e de polarização como o que vivemos hoje. […] A diretoria-executiva demanda uma composição com indivíduos de reconhecida experiência profissional, sem viés político-eleitoral.
A governança da ARD deve ser intergovernamental e interinstitucional, com conselhos amplos para garantir a escuta e um conselho de administração enxuto e ágil. Uma equipe executiva profissional e competente seria responsável pela proposição e implementação dos projetos de recuperação“.
O que quer dizer isto? Os autores propõem a criação de uma instituição paralela ao Estado, financiada por este, mas sem a ingerência dos trabalhadores, sem eleições, com tecnocratas apontados diretamente pelo capital financeiro como seus administradores. Em outras palavras, a entrega do poder estatal diretamente para os banqueiros.
A proposta neoliberal é disfarçada com a assistência ao estado, mas o caso é evidente. O artigo ressalta ainda uma “maior integração internacional”. Ou seja, uma instituição nova, sem qualquer possibilidade de interferência pela população, mas com ligações internacionais, leia-se: ao imperialismo. Infelizmente não surpreende que, em meio a toda a destruição causada pela política neoliberal, seus arautos consigam ter a ousadia de propor um aprofundamento dessa política.