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Editorial

‘Errar é humano’, ou como estabelecer uma ditadura

Para a burguesia, Cármen Lúcia deve corrigir os erros de percurso cometidos por Moraes em sua cruzada para instaurar um regime autoritário no Brasil

Nessa terça-feira (3), a ministra Cármen Lúcia tomou posse como nova presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em seu primeiro discurso, ela afirmou que “a mentira espalhada pelo poderoso ecossistema das plataformas” é um “desaforo tirânico contra a integridade da democracia”.

“A mentira é um insulto à dignidade do ser humano, um obstáculo para o exercício pleno das liberdades. Um dos desafios contemporâneos, e que ocupa parte da ação da Justiça Eleitoral para que não prospere a mentira espalhada pelo poderoso ecossistema digital das plataformas, é um desaforo tirânico contra a integridade das democracias”, afirmou.

Na ocasião de sua posse, Merval Pereira, um dos principais porta-vozes da burguesia, publicou um artigo n’O Globo intitulado Ser humano, no qual faz uma espécie de balanço da atuação do Judiciário brasileiro da Lava Jato até aqui.

Além de concordar com as declarações da juíza no sentido da censurar a Internet durante as próximas eleições, o colunista da Família Marinho reconhece as arbitrariedades cometidas por figuras como Alexandre de Moraes. Como seu título indica, entretanto, não passaram de meros “erros” e, para Merval, “errar é humano”:

“Nunca, como nos anos recentes, os ministros do Supremo mostraram-se tão humanos na capacidade de cometer erros em consequência de situações pessoais que influenciam suas decisões, levando quem salvou a democracia a colocá-la em risco. Como errar é humano, e a vaidade nos ataca a todos, à medida que os juízes se afastam da letra da lei para ampliar ou restringir seu entendimento, o resultado é o aumento de seu próprio poder, que embriaga.

Houve momento na nossa triste história recente em que, se não houvesse reação firme do Supremo, nossa democracia poderia ter sido destruída. Mas a concentração de poder nas mãos de um mesmo juiz, escolhido por desejo monocrático de um presidente eventual do Supremo, transformou em todo-poderoso o relator de todos os processos ligados, direta ou indiretamente, à divulgação de fake news.”

Aqui, Merval admite que Moraes agiu fora do que a lei determina. Entretanto, tudo isso estaria justificado porque “se não houvesse reação firme do Supremo, nossa democracia poderia ter sido destruída”. Posicionamento que fica absolutamente evidente quando diz que “foi decisão autoritária que pareceu à época condizente com a gravidade da situação [grifo nosso]”.

Ora, Merval, enquanto funcionário da imprensa burguesa, sempre se mostrou um defensor da lei e da ordem, do “Estado Democrático de Direito”. Agora, sem hesitar, defende que é permitido, sim, passar por cima da lei, desde que a situação seja “grave” o suficiente.

Em outras palavras, a burguesia reconhece, por meio deste artigo, que Moraes agiu de maneira ilegal. Entretanto, deixam claro que foi necessário.

Trata-se de uma demonstração de que o Brasil é terra sem lei. Se a legislação depender dos problemas que podem surgir no futuro, então não existe legislação. Afinal, segundo o raciocínio de Merval, se instaurar uma ditadura fascista condizer “com a gravidade da situação”, fará parte do jogo. Assim como agora, a burguesia não pensará duas vezes antes de defender o regime ditatorial e justificá-lo por meio de colocações genéricas como “nossa democracia poderia ter sido destruída”.

Agora, quem determina que medidas são cabíveis para cada situação política? Se era realmente necessário atacar os direitos democráticos da população como fez Moraes, por que isto não foi, por exemplo, submetido ao Congresso, apresentado à população? Finalmente, o regime político prevê estados de exceção, como em guerras.

Entretanto, existe uma pergunta mais importante que deve ser feita a cínicos como Merval Pereira: depois de Moraes e de sua truculência jurídica, o que mudou? Absolutamente nada.

O bolsonarismo continua firme, não é à toa que o Partido Liberal (PL), de Bolsonaro, elegeu a maior bancada para a Câmara em 2022. Bolsonaro, apesar de inelegível no momento, está preservado, atuando como o maior cabo eleitoral do País.

Após a “caçada de fascistas” promovida por Moraes, o bolsonarismo mudou de figura? Deixou de ser uma “ameaça à democracia”? A situação, desse ponto de vista, deixou de ser “grave”? Não, não e não.

Moraes serviu para destruir a legislação brasileira e pôr absolutamente todos os direitos democráticos do povo em risco. Agora, está sendo descartado, substituído por uma política que seja tão repressiva quanto, mas que seja mais sofisticada, menos escandalosa. Algo que é explicitamente dito por Merval em seu artigo:

“A ministra Cármen Lúcia, única mulher no Supremo no momento, terá a oportunidade de, com a serenidade firme que a define, colocar o trem de volta aos trilhos. Teremos nos próximos anos dois juízes equilibrados e dedicados a fazer avançar a democracia — Luís Roberto Barroso presidindo o Supremo e Cármen Lúcia no TSE — e podemos ter esperanças de que o cenário moderado que começa a se desenhar no ambiente jurídico prevaleça”.

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