Nesta terça-feira (4), um dia depois de o Instituto Nacional Eleitoral (INE) reconhecer Claudia Sheinbaum como a nova presidente do México, o Brasil 247, porta-voz de vários setores do governo Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT), publicou o artigo Eleição de Sheinbaum no México evita avanço da extrema direita na América Latina, comemorando a vitória da candidata do partido Morena. A matéria, por sua vez, é uma pequena reportagem sobre outro artigo, publicado no jornal espanhol El País, intitulado A vitória esmagadora de Sheinbaum impede a expansão da extrema direita na América Latina, assinado por Naiara Galarraga Gortázar, correspondente do jornal no Brasil.
Não é mera coincidência que o Brasil 247 tenha escrito uma matéria com base em declarações do El País. Até 2021, o jornal espanhol tinha uma versão em português, que era apresentada como um órgão progressista. Na data de seu fechamento, inclusive, o hoje deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) chegou a lamentar o fechamento de “um dos poucos órgãos de imprensa sem subserviência à direita no país”. Nada mais distante da realidade: o El País é muito direitista, anticomunista e diretamente ligado ao imperialismo espanhol. A título de exemplo, basta lembrar que o periódico comemorou a morte de Abimael Guzmán, líder do Partido Comunista do Peru (Sandero Luminoso). A demagogia que o El País faz com setores da esquerda brasileira, portanto, serve somente para promover os interesses do imperialismo na América Latina. Neste caso, não é diferente.
O argumento central do El País é o de que a eleição de Sheinbaum teria confirmado a esquerda como uma força dominante na América Latina. Diz Gortázar, logo no primeiro parágrafo do artigo:
“O eleitorado mexicano confirmou este domingo nas urnas o que as sondagens antecipavam há meses e levou ao poder Claudia Sheinbaum, de 61 anos, uma cientista que será a primeira presidente do México. A vitória esmagadora do candidato progressista, cerca de 30 pontos à frente do candidato conservador da oposição, Xóchitl Gálvez, consolida o domínio da esquerda na América Latina, com Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil; Gustavo Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, no Chile. A vitória de Sheinbaum, herdeiro político de Andrés Manuel López Obrador e agora bandeira do seu Movimento de Regeneração Democrática (Morena), significa também um compromisso com a continuidade após uma longa temporada em que os eleitores latino-americanos insistiram na mudança e elegeram o candidato contra o governante.”
O que o artigo não menciona, no entanto, é que há também na América Latina governos profundamente direitistas, como o governo de Javier Milei (Argentina), o governo de Dina Boluarte (Peru), o governo de Daniel Noboa (Equador), o governo de Nayib Bukele (El Salvador), o governo de Santiago Peña (Paraguai), o governo de Luis Alberto Lacalle Pou (Uruguai) e o governo de Rodrigo Chaves (Costa Rica). Na melhor das hipóteses, a autora poderia dizer que, do ponto de vista numérico, esquerda e direita estão em uma situação de relativo empate, quando o critério é a quantidade de países que cada um governa.
Gortázar, então, apresenta um critério para justificar a ideia de uma hegemonia esquerdista. Ela diz que os países sob governos “progressistas” são quatro entre os cinco maiores da região. De fato, à exceção da Argentina, que tem a segunda maior economia da América Latina, as cinco maiores economias são governadas pelos presidentes mencionados. No entanto, esse critério leva a uma grande distorção na avaliação da situação política na América Latina.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que, à exceção de Lula, os outros presidentes “progressistas” não são lideranças populares. Não são a expressão radicalizada de um movimento de massas. Lula, ainda que adote uma política muito moderada, tem um vínculo direto com as massas e, neste sentido, quando pressionado, pode assumir posições muito combativas. Não é o caso, no entanto, dos presidentes de Chile e Colômbia e da presidente eleita do México.
O presidente chileno, Gabriel Boric, é uma espécie de administrador da política neoliberal no Chile. Uma figura cujo vínculo com a esquerda se perdeu há muito tempo, quando estudante, que atua tão-somente no sentido de procurar manter uma estabilidade para que a burguesia chilena possa continuar levando a sua política econômica de assalto à população. Tanto é assim que Boric manteve presos os manifestantes que participaram das mobilizações que viabilizaram a sua eleição e foi incapaz de aprovar uma constituição que pusesse abaixo o regime deixado por Augusto Pinochet. Claudia Sheinbaum, assim como Boric, é uma burocrata, uma pessoa cuja trajetória política está ligada ao próprio Estado capitalista. Sheinbaum, inclusive, já recebeu o Prêmio Nobel da Paz e ocupou cargos na Organização das Nações Unidas (ONU). O mais esquerdista dos três, Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro, também é um político próximo ao imperialismo, de tal modo que faz parte do esforço do grande capital em criar uma entidade alternativa ao Foro de São Paulo, a Rede Futuro.
Ao passo em que, à exceção de Lula, os presidentes “progressistas” são figuras bastante moderadas, a burguesia conseguiu implementar governos direitistas “puro-sangue”. É o caso, por exemplo, da ditadura do fascista Javier Milei, que está atacando o povo argentino com um radicalismo com o qual os presidentes “progressistas” sequer sonham em atacar os capitalistas. Nos primeiros 100 dias de governo, o choque contra a população foi tão grande que as vendas nas farmácias despencaram pela metade. Esse também é o caso de Nayib Bukele. No seu primeiro mandato, que acaba de expirar, o presidente reeleito de El Salvador mandou 70 mil pessoas para a cadeia – o que corresponde a 1% de toda a população do país. No Peru, a situação não é diferente. A ditadura de Dina Boluarte vai no mesmo caminho sangrento. Apenas no primeiro mês de governo, mais de 40 pessoas foram mortas por protestar contra o golpe de Estado que havia acabado de acontecer no país.
Uma análise real da situação na América Latina irá mostrar, portanto, que, ainda que haja presidentes “progressistas” à frente de países importantes na região, eles não são, à exceção de Lula, políticos com capacidade de levar adiante um governo verdadeiramente progressista, de enfrentamento com o imperialismo. Enquanto isso, vários presidentes de direita estão levando adiante uma verdadeira guerra contra o povo.
Em segundo lugar, Gortázar ignora por completo que há países em que seus presidentes são verdadeiramente progressistas. É o caso de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua. Não apenas seus presidentes são de esquerda, como o regime em si é muito mais progressista. Cuba é o único Estado Operário das Américas. O regime chavista é o resultado de uma profunda mobilização das massas, que colocou o imperialismo na defensiva. O regime sandinista, por fim, é o resultado de uma verdadeira revolução, que só não se tornou um Estado Operário porque não foi levada às últimas consequências.
Esses são os países que se opõem de fato a Milei, Bukele, Boluarte e Noboa. À exceção da Venezuela, que é um país que se aproxima da economia de um país como a Colômbia, os demais países são minúsculos e muito atrasados. E mais: o regime mais jovem é o da Venezuela, que já tem três décadas de existência. São expressões de diferentes ondas revolucionárias distintas: Cuba, como prenúncio da onda que sacudiria o mundo em 1968; a Nicarágua, como efeito da crise do petróleo de 1974; e a Venezuela, como resultado da revolta popular contra o neoliberalismo. Todos os regimes que acompanharam o impulso venezuelano entraram em colapso.
Não é à toa que Gortázar esqueceu de mencionar Cuba, Venezuela e Nicarágua quando fala dos governos da esquerda na região. O El País é um dos órgãos da imprensa imperialista que mais faz campanha pela derrubada dos governos da Venezuela e da Nicarágua. No próprio artigo, a autora cita apenas a Venezuela e para dizer que “a recente decisão do chavismo de retirar o convite aos observadores da União Europeia, juntamente com o assédio persistente da oposição, prejudicou ainda mais a atmosfera”. Isto é, trata-se de um regime autoritário, que estaria perseguindo a oposição, e não um governo apoiado pelas massas, que, ao contrário de Boric, trava uma luta para que os abutres imperialistas não roubem o petróleo do país.
Em terceiro lugar, Gortázar também ignora a correlação de forças nos países citados. Todos os quatro governos do “domínio da esquerda” são governos em crise.
Gabriel Boric, o mais direitista de todos, está servindo, na prática, como uma espécie de governo tampão entre o neoliberal Sebastián Pìñera e o abertamente fascista José Antonio Kast. Boric foi o primeiro presidente chileno após uma onda de mobilizações insurrecionais e, ao que tudo indica, entregará o país à extrema direita. A situação de Gustavo Petro é muito difícil, e já há setores no país dispostos a um golpe contra o presidente colombiano. O governo Lula, por sua vez, também vive uma crise muito profunda. Ainda que apoiado por uma ampla mobilização popular que o elegeu em 2022, Lula não consegue levar adiante um programa nacionalista porque vem sendo sabotado pela imprensa, pelo Judiciário, pelo Congresso e pelos seus “aliados” da frente ampla. O brasileiro já ultrapassou seu 17º mês de mandato e não conseguiu, até agora, realizar medidas de impacto. Enquanto isso, seu rival, Jair Bolsonaro, tem realizado atos públicos grandes, demonstrando força.
O caso mexicano, ainda que guarde algumas particularidades, também demonstra uma fraqueza da esquerda. O atual presidente, López Obrador, não é uma liderança política de esquerda, como Lula ou mesmo Petro, mas o chefe de um governo da burguesia nacional mexicana. Esse governo, ainda que represente interesses oligárquicos, acaba entrando em contradição com o imperialismo. Isso pode ser visto, por exemplo, no caso do narcotráfico, que é uma atividade que corresponde a uma fatia importante da economia mexicana, mas na qual o imperialismo procura impedir que os cartéis mexicanos influenciem a economia norte-americana. Essas contradições fizeram com que López Obrador se deslocasse à esquerda na política internacional recentemente, o que levou o imperialismo, em resposta, a subir o tom em suas críticas contra o presidente.
A herdeira de López Obrador, ainda que seja do mesmo partido do presidente, não tem a sua popularidade e, ao mesmo tempo, tem um histórico de relações profundas com os organismos imperialistas. Diante disso, o imperialismo, na medida em que sua vitória se aproximava, iniciou uma campanha para que ela ceda mais à pressão dos monopólios internacionais e, assim, favoreça menos as oligarquias mexicanas que López Obrador favoreceu em seu governo.
Os governos da direita na América Latina, por sua vez, não são governos que estão nessa situação. Naturalmente, os governos repressivos sempre apresentam a tendência à explosão social. Recentemente, por exemplo, explodiu no Equador uma crise na forma da revolta de organizações criminosas. No entanto, mesmo com os choques entre a população, Milei, Bukele, Noboa e companhia estão levando adiante uma política de terra arrasada e estão recebendo todo o apoio do imperialismo para isso.
Em quarto lugar, a autora ignora a luta política na América Latina como um todo. Diz Gortázar:
“Lula está navegando, neste terceiro mandato, contra o vento porque ganhou por pouco e sem maioria no Congresso, pelo que o Governo está sujeito a laboriosas negociações para avançar com cada um dos seus projetos.”
Mas o fato é que o PT nunca teve maioria no Congresso. No entanto, em tempos anteriores, conseguia governar. O que mudou, então?
O que mudou foi a relação entre as classes sociais. Hoje, o imperialismo está em uma posição de fragilidade tal que não consegue conviver com governos na América Latina que sejam minimamente progressistas. Diante do fracasso na Ucrânia e no Oriente Próximo, o imperialismo está em uma contraofensiva para forçar todos os países do mundo a se voltarem contra os seus maiores inimigos: Rússia, China e Irã. Essa contra-ofensiva é cada vez mais clara em fatos como a tentativa de golpe de Estado na República Democrática do Congo e na Turquia, no aumento da censura em todo o mundo, na ameaça de “revoluções coloridas” em países como a Geórgia e no aumento da censura em todo o mundo.
Um governo como o brasileiro, que não consegue, pela relação que tem com as massas, ser um governo ultra neoliberal, que reserve todo o dinheiro do Estado para os bancos e para as farras militares do imperialismo, nem consegue ser um governo completamente alinhado com a política externa genocida dos Estados Unidos, é um governo com o qual o imperialismo não está disposto a colaborar. Esse problema fundamental é o que inviabiliza governos veradeiramente progressistas na região – a não ser aqueles que realizaram, em alguma medida, um expurgo de seus elementos direitistas.
Em quinto e último lugar, no que se refere mais especificamente ao resultado eleitoral mexicano, a autora apresenta a situação como de “tranquilidade”. Diz ela:
“Um resultado verdadeiramente esmagador que oferece a Sheinbaum uma paz de espírito que sem dúvida invejará outros presidentes progressistas da América Latina. Ao contrário de Lula ou Boric, Morena enfrentou nestas eleições não um candidato de extrema direita, como Jair Bolsonaro ou José Antonio Kast, mas Xóchitl Gálvez, uma empresária conservadora e sorridente, eleita por uma coligação de partidos políticos tradicionais.
(…) Petro fez história ao se tornar o primeiro presidente de esquerda da Colômbia e nomear uma mulher negra, Francia Márquez, como vice-presidente. Mas a sua administração está repleta de obstáculos e contratempos. A chegada de Boric ao Palácio Moneda foi uma lufada de ar fresco devido à sua juventude e à sua firmeza na defesa dos direitos humanos, sejam eles violados por aliados ideológicos ou por líderes dos antípodas”.
(…) ‘O México elegeu um progressista como o primeiro presidente de sua história’, destacou o colombiano Petro em suas felicitações.”
A tranquilidade, neste caso, é sinônimo não de que Sheinbaum tenha imposto uma grande derrota à direita, mas o exato oposto. Indica justamente que, para a direita, o resultado não é tão negativo. Indica que o imperialismo considera ser possível fazer um acordo com a nova presidente mexicana, de tal modo que não foi necessário apresentar um candidato que polarizasse com Sheinbaum.
E é aqui que fica claro, no final das contas, qual é o grande objetivo da matéria do El País. É apresentar como obra “da esquerda” justamente aquilo que é obra do imperialismo. Para o jornal, a questão decisiva para a esquerda latino-americana não é a luta contra o imperialismo, mas eleger uma vice-presidente na Colômbia que seja uma “mulher negra” – ainda que tal mulher seja financiada por institutos imperialistas. É eleger uma mulher presidente do México, ainda que ela seja ligada a organismos imperialistas. É eleger um jovem no Chile, ainda que ele seja a antítese do movimento insurreicional no país andino.
O objetivo é confundir a esquerda. É fazê-la acreditar que está tudo indo bem quando, na verdade, há uma grande contraofensiva em curso contra toda a esquerda na região.