Na última quinta-feira (30), o ex-presidente Donald John Trump foi condenado por supostamente ter falsificado registos comerciais para encobrir um escândalo sexual que poderia ter afetado sua campanha presidencial de 2016. Essa é a primeira vez na história em que um ex-presidente norte-americano é condenado em um processo criminal, o que certamente terá um impacto importante nas eleições presidenciais deste ano, uma vez que Trump voltará a concorrer ao pleito pelo Partido Republicano.
Trump foi condenado em todas as 34 acusações de falsificação por um júri composto por 12 nova-iorquinos (sete homens e cinco mulheres), que levaram dois dias para chegar à decisão. Segundo o jornal norte-americano The New York Times, o ex-presidente “mostrou pouca emoção quando o veredito foi lido, balançando a cabeça enquanto o júri recitava ‘culpado’ 34 vezes”.
De acordo com o processo, Trump teria fraudado documentos para ocultar a finalidade do dinheiro destinado a seu antigo advogado e homem de confiança, Michael D. Cohen. Os documentos foram registrados como despesas legais comuns, mas, segundo a acusação, era parte de um acordo secreto de 130 mil dólares para que Cohen comprasse o silêncio da atriz pornô Stormy Daniels, com quem Trump teria tido relações sexuais. Hoje inimigo mortal de Trump, o advogado testemunhou contra o ex-presidente, corroborando a versão apresentada por Daniels e favorecendo a condenação do republicano. Todd Blanche, atual advogado de Trump, chamou Cohen de “o maior mentiroso de todos os tempos”.
A decisão despertou a reação imediata da sociedade norte-americana. Tão logo o júri deu o seu veredito, a equipe de Donald Trump iniciou uma campanha de arrecadação de fundos, chamando o ex-presidente de “prisioneiro político” e declarando que “a Justiça está morta nos Estados Unidos”. Ao sair do tribunal, o republicano se recusou a falar com os repórteres, limitando-se a dizer que “o verdadeiro veredito será dado em 5 de novembro, pelo povo”.
Segundo apoiadores do ex-presidente, a revolta contra a condenação foi tão grande que a plataforma de angariação de fundos WinRed, criada para processar as doações da campanha do republicano, acabou ficando fora do ar.
“Tantos norte-americanos quiseram doar para a campanha do presidente Trump que as páginas do WinRed caíram”, disse a campanha do republicano em um comunicado nas redes sociais.
Adversário de Donald Trump nas eleições deste ano, o candidato independente Robert F. Kennedy Jr. também criticou a condenação, atribuindo os seus vícios a uma conspiração do partido do atual presidente, Joe Biden. “A estratégia do Partido Democrata é derrotar o presidente Trump no tribunal e não nas urnas”, disse ele.
Ainda que tivesse saído na defesa de Trump no que está sendo chamado de “Caso Manhattan”, Kennedy fez questão de delimitar as suas diferenças, criticando, por exemplo, a política do republicano durante a pandemia de coronavírus. O candidato independente destacou que também estava “concorrendo contra o presidente Trump nesta eleição”, mas que “a diferença é que estou desafiando-o em seu histórico”. Kennedy concluiu dizendo que “isso acabará ajudando o presidente Trump entre uma grande parte do público norte-americano, que acredita que o sistema judicial e o sistema de aplicação da lei foram politicamente transformados em armas”.
A campanha rival de Trump, por sua vez, optou por uma reação muito mais moderada. Ainda que ativistas tenham comemorado o resultado e que o grupo MoveOn tenha recebido pedidos de 10.000 adesivos gratuitos com os dizeres “Trump é um criminoso” nas primeiras duas horas após sua condenação, o presidente Joe Biden limitou-se a dizer que “só há uma maneira de manter Donald Trump fora do Salão Oval: nas urnas”.
Ainda que o governador democrata J.B. Pritzker, de Illinois, tenha declarado que “Donald Trump é um racista, um homofóbico, um vigarista e uma ameaça para este país” e que “agora pode adicionar mais um título à sua lista – a de criminoso”, os aliados de Biden optaram por não subestimar o adversário: “mesmo sendo um criminoso condenado, Trump ainda pode vencer”, disse Jim Messina, gerente de campanha do ex-presidente Barack Obama.
A divisão entre aqueles que comemoraram a condenação de Trump e os que viram nisso um caso de perseguição também apareceu no conjunto da sociedade norte-americana. Em reportagem publicado pelo periódico The New York Times, pessoas comuns apresentaram as suas impressões sobre o veredito do júri nova-iorquino.
Foi “embaraçoso para o nosso país” ver um ex-presidente ser considerado culpado, disse Malcolm Jake, 23 anos, de Durham, N.C. Já Ashley Daniels, 38 anos, de Los Angeles, viu com “alegria” a decisão. “Mas fiquei um pouco surpresa, quando descobri que ele ainda pode concorrer à presidência, mesmo tendo sido condenado por 34 crimes. Como é possível ter empregos regulares negados, mas pode ser presidente após cometer 34 crimes?”.
Columba Peña Wilson, 76 anos, de San Antonio, discorda. “Eu não sou democrata. Eu não sou republicano. Eu voto na pessoa. Isso não vai me fazer mudar de ideia porque não acho que ele infringiu a lei. Trump sempre foi um livro aberto. Ele não tem nada a esconder”. Já para Kevin Holloway-Harris, 30 anos, de Los Angeles, “é incrível que a justiça realmente seja feita desta vez”.
A divisão em torno do apoio e do rechaço a Trump também apareceu na própria imprensa burguesa norte-americana. Jeanine Pirro, apresentadora da Fox News, tradicionalmente vinculada à extrema direita, declarou que “há algo que está muito errado aqui; caímos de um penhasco”. Trey Gowdy, apresentador da mesma emissora, já havia chamado o júri de “pró-acusação”, mesmo antes do veredito. Em seu portal, a emissora acusou o julgamento de ter sido “vergonhoso”.
O caso da Fox News, no entanto, era minoria. Na CNN, a comentarista Jake Tapper declarou o dia “um momento inacreditável na história norte-americana”. Na MSNBC, Rachel Maddow disse que “este é um veredito definitivo e irredutível” e que restaria saber se Trump iria “minar o Estado de direito”.
O ‘caso zumbi’
Não por acaso, Roberto Kennedy Jr. considerou o caso como “a mais fraca” das acusações contra Trump. Essa opinião é compartilhada por muitos analistas.
“Antes da condenação, na quinta-feira, em Manhattan, o ex-presidente havia conseguido, no que diz respeito à atuação de sua defesa, o que alguns de seus conselheiros mais próximos consideravam algo próximo da perfeição. Trump havia perdido processos civis com danos dispendiosos, mas os quatro processos criminais que ameaçavam a sua liberdade iam tão mal que os seus conselheiros muitas vezes ficavam incrédulos quanto à sua boa sorte”, escreveram os jornalistas Maggie Haberman e Jonathan Swan no artigo A sorte de Donald J. Trump nos seus casos criminais expirou, publicado por The New York Times.
“No caso da Flórida, em que foi acusado de obstrução da justiça e posse ilegal de documentos confidenciais, um juiz nomeado por Trump passou tanto tempo com questões menores que o julgamento seria quase certamente adiado para depois das eleições presidenciais de novembro”, continua o artigo. “No caso da Geórgia, a promotora que acusou Trump de fazer parte de uma conspiração para anular as eleições de 2020 foi apanhada em um caso romântico com o homem que contratou para a ajudar a processar Trump”.
A imprensa norte-americana credita parte da derrota de Trump ao promotor distrital de Manhattan, Alvin L. Bragg, responsável pela acusação contra o ex-presidente. Apresentado por The New York Times como se fosse uma espécie de Joaquim Barbosa, o juiz que levaria à prisão de importantes dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciando os preparativos para o golpe de Estado de 2016; o jornal afirma, em diferentes artigos, que:
“A batalha legal colocou dois opostos um contra o outro: Bragg, um promotor formado em Harvard que muitas vezes evita os holofotes da imprensa, e Trump, a estrela do reality show que se tornou ex-presidente republicano e que anseia e molda isso.
[…]
Bragg, 50, o primeiro promotor público negro de Manhattan, prometeu, quando concorreu ao cargo, trazer uma nova abordagem à justiça criminal no bairro. Ele disse que adotaria a mesma abordagem para processar os ricos e poderosos que faria com qualquer outra pessoa. E então ele abriu o processo contra Trump, acusando o ex-presidente do crime aparentemente mundano de falsificar registros comerciais.
[…]
Agora, Bragg consolidou seu lugar na história como o primeiro promotor a condenar um ex-presidente. Essa vitória veio depois de ter sido violentamente atacado, repetidas vezes, por Trump, que retratou o caso como tendo motivação política, embora por vezes o insultasse pessoalmente.”
Contrariando a sua fama de “discreto”, no entanto, Bragg se valeu do Caso Manhattan para promover sua candidatura a promotor público, mencionando várias vezes o ex-presidente republicano.
A própria imprensa norte-americana admite que o Caso Manhattan seria um “caso zumbi”, uma vez que estava vivo, depois morto, depois vivo novamente.
“Para defender que as ações de Trump atingiram o nível de crime, os promotores também tiveram de demonstrar que Trump falsificou os registos para ocultar um segundo crime. Este elemento do caso desencorajou o antecessor do Sr. Bragg, Cyrus R. Vance Jr., de seguir em frente. Mas Bragg, um promotor de carreira e uma espécie de especialista em direito, pressionou seus promotores a vasculhar o código penal em busca de uma teoria viável [grifo nosso].”
O que a trajetória tortuosa do caso mostra é que a mesma divisão que se viu na opinião pública, nos partidos e na imprensa também está presente dentro do próprio Estado norte-americano. Se, por um lado, Trump pode ter se favorecido com a composição conservadora da Suprema Corte e de casos como o do juiz da Flórida, o promotor do Caso Manhattan estava decidido a encontrar uma brecha legal para o ex-presidente.
Essa divisão, inclusive, é a grande diferença do caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, para o de Jair Bolsonaro (PL), no Brasil. Ainda que Bolsonaro conte com um apoio de um setor da burguesia brasileira, ele foi incapaz de conseguir estabelecer um canal de televisão próprio, nem tem uma influência tão grande sobre o Poder Judiciário. Bolsonaro, ainda que seja um político burguês, não representa um setor do imperialismo, como Trump representa, mas sim um setor da burguesia brasileira que está sempre disposto a fazer um acordo com os grandes monopólios.
E agora?
A opinião dos setores mais poderosos do imperialismo, que controlam órgãos de comunicação como The Economist, The New York Times e Financial Times, defenderam, todos eles, a atuação de Bragg e o veredito do júri. Ainda que procurando se manter isentos, os órgãos deixam claro que o julgamento, de acordo com a sua opinião, teria acontecido de maneira imparcial e democrática.
Nada diferente era esperado. Nos últimos anos, os órgãos de imprensa do grande capital estiveram em uma campanha sistemática contra o ex-presidente. Afinal, Trump representa um setor do imperialismo mais fraco – e, portanto, menos agressivo, em um momento em que os Estados Unidos precisa destinar todos os seus esforços para reprimir em todo o mundo as revoltas contra a sua dominação.
Apesar de discretamente saudar a decisão do júri, a imprensa reconhece que nada está decidido. A frase do próprio Trump, de que “o verdadeiro veredito será dado em 5 de novembro, pelo povo“, foi praticamente reproduzida no título do principal jornal do imperialismo no Brasil, O Globo, que estampou: Julgamento mais importante de Trump será na urna.
No artigo O veredito de culpa de Trump coloca o sistema político dos EUA em julgamento, do jornal Financial Times, a posição do imperialismo aparece com clareza:
“A Suprema Corte de maioria conservadora tem sido abertamente solidária às alegações de imunidade de Trump à acusação por atos que ele cometeu como presidente, incluindo a alegação de que ele tentou derrubar uma eleição. O atraso do tribunal na decisão de imunidade praticamente garantiu que Trump não será julgado antes da eleição. Essa é uma falha colossal do sistema jurídico dos EUA.
Na quinta-feira, um júri de Nova York mostrou que nenhum homem está acima da lei. Seus colegas norte-americanos poderiam anular isso em novembro. A maioria dos tribunais mais altos do país está do lado de Trump. Mas o único tribunal que importa agora é a cabine de votação. Até então, é prematuro dizer que o sistema dos EUA está funcionando.”
Ainda que reconheça que a condenação de Trump não foi suficiente para tirar o ex-presidente da disputa judicial, os grandes jornais apresentam, todos eles, a mesma questão: será que Trump irá “respeitar o resultado das urnas?”. E Trump, curiosamente, responde: “não importa o que digam os tribunais, o que importa é o resultado das urnas“.
A posição de ambos os setores nada tem a ver com qualquer princípio democrático, obviamente. A exigência do imperialismo para que Trump respeito o tal “Estado Democrático de Direito” é como um aviso. É como se dissesse: “o Estado está conosco e não adianta brigar”. A reação de Trump, no entanto, é como quem diz: “ainda que eu não controle os setores fundamentais do Estado, eu tenho poder suficiente para brigar“.
Em um dos momentos mais delicados do regime político norte-americano, em que a popularidade do presidente Joe Biden despenca, ao mesmo tempo em que os estudantes se enfrentam com a polícia em uma das mobilizações mais radicais das últimas décadas, a repercussão da condenação de Biden demonstra a profunda divisão do país mais importante da dominação imperialista mundial.