Em texto publicado no Brasil 247, a dita filósofa Márcia Tiburi afirma que “as fake news seguem normalizadas para a alegria dos canalhas. Os pastores que votaram pela manutenção do veto sabem que pecam, mas como são vis e diabólicos, não se importam com isso”. E conclui: “eles sabem que seus fiéis são ignorantes úteis”.
Tratar os fiéis de igrejas evangélicas ou de qualquer outra fé como “ignorantes úteis”, além de ser uma colocação totalmente prepotente e arrogante, serve apenas para aumentar a quantidade de pessoas nas fileiras da direita, não o contrário. Causar repulsa contra quem a proferiu que para quem a ofensa foi destinada – isto é, para os pastores.
Sobre a questão em si, das “fake news“, Tiburi afirma que “bancar o veto à criminalização da informação falsa é garantir que o jogo da manipulação não mudará”, como se a manipulação viesse dos bolsonaristas dentro das igrejas, nas redes sociais, e não do monopólio criminoso da imprensa televisiva e do rádio.
“É compreensível. Para que acabar com a mentira se a extrema-direita não sobrevive sem ela?”. Na realidade atribui-se para a esquerda o monopólio da verdade, ou que este monopólio estivesse nas mãos dos Estado capitalista, que é o patrono eterno da falsificação dos fatos. A esquerda não deveria se arvorar no direito de ser a detentora única da verdade, até por que esse é um critério relativo, filosoficamente falando. Não é possível existir um juiz da verdade e da mentira. Esse critério só existiu em Estados absolutistas, dominados pela igreja, ou em ditaduras militares.
Tiburi estica a corda para falar o seguinte: “Já Mussolini e Hitler precisavam da mentira, como Bolsonaro precisou para se eleger e seguir com seu mandato de destruição do país. Como Eduardo Leite e Sebastião Melo no Sul precisam dela para justificar o injustificável. Para os extremistas de direita, acabar com a mentira, essa arma política letal, seria um tiro no pé”.
A questão é que uma suposta mentira se combate com o que seria verdade. Melhor dizendo, uma posição política conservadora se combate com uma política progressista. Não é possível “acabar com a mentira”, nos termos sonhados por Tiburi e outros esquerdistas. A vitória de Bolsonaro não deve ser creditada à mentira, mas à dificuldade da esquerda em levar adiante suas reivindicações, em organizar os trabalhadores e os operários. Da mesma forma, o nascimento e o desenvolvimento do bolsonarismo em nada tem a ver com “mentiras”, mas com a luta de classes. Não adianta acabar com a mentira (se isso fosse possível) se a esquerda não mobiliza ninguém, não esclarece os problemas que estão colocados. Basta ver, para comprovar isso, os fiascos que têm sido os atos em defesa da Palestina realizados no Brasil. A responsabilidade é da inação esquerda, não das “mentiras” da direita.
Se a mentira se tornar crime, por outro lado, quase a totalidade do País iria parar na cadeia. Fora o fato de que a indústria oficial e tradicional de mentiras continuaria aí, firme e forte, como é o caso das capitanias hereditárias da imprensa nacional, as famílias que controlam a TV e o rádio.
“Não seriam os armamentistas que deixariam de aproveitar para liberar mais essa arma, a arma das armas contra a democracia. Deputados e deputadas do campo democrático que se cuidem, pois estamos falando de armas e de seu uso por homens armados e capazes de tudo. Além das mentiras, daqui a pouco tais brutamontes podem estar usando revólveres e metralhadoras dentro do Congresso. Ou fora dele, como fizeram contra Marielle Franco. Canalhas não aceitam perder”.
Aqui se supõe que a principal arma contra a democracia seria a mentira. Como se o regime que o brasileiro vivesse pudesse ser considerado democrático, no sentido mais profundo da palavra. Só o fato de termos quase um milhão de pessoas presas revela que o regime não é democrático. E essa é uma das verdades que ninguém quer debater. Atualmente mais de 20 milhões de pessoas no Brasil vivem com o Bolsa Família… isso certamente não faz parte de um regime democrático, onde uma parcela gigantesca da população quase não tem o que comer.
A mentira, nesse sentido, não quer dizer absolutamente nada. Na verdade, quase tudo que se diz ou não geralmente não têm importância. O que tem importância são as questões fundamentais da vida social, os direitos elementares. Entregar essa briga em troca do combate à mentira só poderia passar pela cabeça de quem já está bem resolvido dentro do regime de opressão que se vive. É diante disso que o que se diz, verdade ou não, ofensivo ou não, deve ser livre, totalmente livre. É a liberdade de expressão, conquistada a duras penas pela luta dos trabalhadores em todo o mundo. E, diante dela, as pessoas, com o juízo que possuem, devem refletir sobre. Não pode ser uma proposta da esquerda estabelecer um tutor de consciência alheia. Essa, na verdade, é a proposta tradicional da direita, que sempre foi um fiscal do pensamento alheio.
Por outro lado, o pacifismo contra o armamentismo da direita também vai levar ao resultado negativo. A luta de armas na mão contra a opressão do regime é uma questão tradicional da esquerda que Tiburi propõe abandonar em troca da defesa pacifista e legalista da “verdade”. Se o Hamas fosse depender disso para derrotar “Israel”, veríamos mais 100 anos de dominação colonial sionista na Faixa de Gaza.
“No campo democrático, o jogo da verdade é cada vez mais frágil. E temos que nos perguntar o que pode a verdade contra a mentira quando a mentira virou regra e é legalizada?” Mas aí caberia perguntar para Tiburi: o que é a verdade?. Ela quem vai determinar o que é a verdade? Alexandre de Moraes? Um policial militar? Um juiz? Deus? Quem, afinal, vai ser o guardião da verdade? A rede Globo?
Ora, a proposta de Tiburi é deixar que o Estado controle a verdade. Justamente o Estado, responsável por inúmeras mortes, diretas (como no caso da ação da Polícia Militar) ou indiretamente, como na tragédia do Rio Grande do Sul, onde boa parte dos defensores da “verdade” tentaram livrar a cara do governo estadual colocando a responsabilidade da tragédia no clima.
“Ninguém precisa mentir sobre a extrema-direita. Talvez as pessoas democráticas não tenham nem criatividade para isso. A imoralidade, a falta de escrúpulos, o desrespeito aos valores democráticos, deixam a todos paralisados no estupor”. A colocação de Tiburi parece mais uma bedel de colégio primário, e se assemelha justamente às colocações de bispos e padres, contra a “imoralidade”. E aqui fica a dúvida sobre quem de fato é “ignorante útil”.
“Não é agradável pensar aonde esse estado de coisas irá nos levar.” Claro, se dependermos do que tem feito a esquerda, de fato, não é nada agradável imaginar o que está por vir. Certamente a defesa da verdade (sabe, Deus, que verdade é essa) não ajudará ao progresso das reivindicações populares.
Chamar de imorais, inescrupulosos, “ignorantes úteis” todo um setor que quase derrotou Lula nas urnas (ou seja, quase 50% do povo) também não é um caminho para derrotar a direita, muito pelo contrário. Essas colocações afastam o povo da esquerda, que se mostra, sempre que possível, super prepotente.
Deixar o controle da “verdade” nas mãos do governo, do Estado, é uma política abertamente conservadora. É uma política de censura, não tem como não ser. Restringir as informações, analisar se verdade ou não, definir repreensões sobre a informação ou sobre o que é dito só pode resultar na censura contra o povo. Afinal não é a esquerda e suas organizações que controlam os aparatos repressivos do Estado, nunca foi. Entra e sai governo, e a repressão sempre está nas mãos da burguesia.