Os crimes de guerra em Rafá, ainda que sejam uma demonstração inédita da perversão humana inerente ao sionismo, são também um grito de desespero de um Estado artificial à beira da morte. “Israel”, outrora famoso por ter derrotado o Egito de Gamal Abdel Nasser em apenas seis dias, por ter construído um supostamente impenetrável “domo de ferro”, por ter sido capaz de reprimir movimentos nacionalistas em vários países árabes, agora aparece aos olhos do mundo como uma entidade frágil, incapaz de se defender.
Diante dessa fragilidade, não adianta mais insistir na propaganda, levada meses a fio pelos sionistas, de que os israelenses eram “pobres judeus perseguidos” lutando contra perigosos “terroristas”. A tenacidade da resistência e o desenvolvimento dos meios de comunicação puseram uma pá de cal na choradeira sionista de que seriam vítimas de um “novo Holocausto”. Agora, é preciso uma nova campanha. É preciso uma campanha que seja capaz não de comover a opinião pública mundial, que, em grande medida, jamais voltará ao estágio anterior no que diz respeito ao apoio à existência de “Israel”. É preciso uma campanha que seja capaz de arrastar as grandes potências imperialistas para uma guerra total em defesa da ocupação criminosa.
Essa ideia está claramente expressa no artigo Nós ainda somos capazes de entender como se vencem as guerras?, publicada por The New York Times e assinada pelo jornalista conservador Bret Stephens. Ex-editor-chefe do jornal israelense The Jerusalem Post, Stephens é parte do que se convencionou chamar de lobby sionista – um grupo muito poderoso de pessoas que pressionam governos e instituições para atender aos interesses do Estado de “Israel”.
Stephens inicia o seu artigo com uma constatação correta: a de que “os Estados Unidos se tornaram especialistas em perder guerra”. Uma constatação que, de tão certa, só poderia partir de um dos polos da política mundial – ou da “extrema esquerda” ou da extrema direita, uma vez que não faria sentido o próprio establishment admitir a sua incompetência. Dito de outra forma, a constatação ou é uma comemoração, de quem considera um fato positivo que o país mais poderoso do mundo esteja perdendo a sua capacidade de dominação, ou é uma crítica ao “pouco esforço” empreendido pelo Estado norte-americano para vencer os conflitos dos últimos 50 anos. Qual será a posição do nosso sionista conservador?
Spoiler: o sionista é a favor de aumentar o esforço de guerra da maior máquina de guerra do mundo. Mas, antes de chegar a essa conclusão, ele apresenta uma série de considerações que não passam de uma grande enrolação para justificar o injustificável: que o povo norte-americano, que está vendo suas condições de vida despencarem, deve ficar ainda mais pobre para que seu exército beba o sangue de mais milhões de mulheres e crianças mundo afora.
Para defender sua posição, Stephen apresenta uma teoria de “como se vencem as guerras”. Após explicar que nenhuma das guerras dos últimos 50 anos “diziam respeito à nossa existência”, uma vez que a “vida nos EUA não teria mudado materialmente se, por exemplo, Cossovo ainda fizesse parte da Sérvia“, ele lembra que, em um passado mais distante, os Estados Unidos já travou tais guerras:
“Durante o cerco de Vicksburg em 1863, a fome ‘cedeu lugar à inanição, pois cães, gatos e até ratos desapareceram da cidade’, observou Ron Chernow em sua biografia de Ulysses Grant. A União não enviou comboios de alimentos para aliviar o sofrimento dos sulistas inocentes. Na Segunda Guerra Mundial, os bombardeiros aliados mataram cerca de 10.000 civis na Holanda, 60.000 na França, 60.000 na Itália e centenas de milhares de alemães. Tudo isso fazia parte de uma política anglo-americana declarada para minar ‘o moral do povo alemão a ponto de sua capacidade de resistência armada ser fatalmente enfraquecida’. Seguimos uma política idêntica contra o Japão, onde bombardeios mataram, segundo algumas estimativas, quase um milhão de civis.”
As tais “guerras existenciais” – ainda que os dois exemplos citados sejam muito diferentes – aparecem aqui para que o autor chegue a uma conclusão verdadeiramente monstruosa: que a história canonizou os “líderes que, diante da terrível escolha entre males que toda guerra apresenta, optaram mesmo por vitórias moralmente comprometidas em vez de derrotas moralmente puras“.
O autor defende abertamente a ausência de qualquer critério moral para determinar o que deve ou não ser feito em uma guerra. Mostra, nesse sentido, um alinhamento total com as autoridades do governo israelense, que queimam pessoas vivas, estupram mulheres, bombardeiam a população civil, torturam prisioneiros e assassinam lideranças políticas. O seu critério seria, portanto, um critério político: vale tudo nas guerras em que a “sobrevivência” de um Estado estivesse em jogo. Vale, por exemplo, jogar bombas nucleares em Hiroxima e Nagasáqui, vale arrasar a cidade de Dresden, vale absolutamente qualquer um dos crimes cometidos pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
O raciocínio de Stephens, por si só, já é um retrato fiel da mente doentia das pessoas que hoje administram a ocupação sionista. São pessoas que são, na verdade, o esgoto da humanidade, uma escória sem quaisquer escrúpulos, sádica, que representa o que há de pior em toda a história humana.
Tudo fica ainda pior, no entanto, quando levado em conta qual interesse Stephens está de fato defendendo. No primeiro caso, ainda que se possa discutir a necessidade ou não de punir a população sulista, o fato é que o exército liderado por Ulysses Grant lutava contra os setores mais reacionários do país em meio a uma guerra civil. No caso da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos eram o que havia de mais reacionário – tanto que, após a Segunda Guerra Mundial, se consolidou como o centro da contrarrevolução mundial.
Se a discussão central de uma guerra se refere à “sobrevivência”, é preciso, então, debater de qual sobrevivência se está falando. Na Segunda Guerra Mundial, assim como no Vietnã e no Afeganistão, a sobrevivência do povo norte-americano nunca esteve em questão. O que esteve, no entanto, foi a sobrevivência da ditadura que os Estados Unidos exercem sobre os povos de todo o mundo. Os Estados Unidos declararam guerra ao Iraque não porque Sadam Hussein ameaçava exterminar o povo norte-americano, nem mesmo ameaçava fazer com que o país regredisse do ponto de vista econômico e social. Eles invadiram o país simplesmente porque temiam que um levante dos povos árabes pusesse fim à farra das grandes petroleiras que controlam a região, condenando o povo do Oriente Médio ao atraso e à fome, enquanto um punhado de banqueiros acumulam suas fortunas.
Não é apenas, portanto, que Stephens defende que, em uma guerra, todos os meios sejam utilizados para impor uma derrota ao inimigo. Ele defende que isso seja feito, às custas de um sofrimento humano imensurável, para defender os interesses de um punhado de ricos.
Após essas considerações, o autor chega aonde queria chegar. Diz ele:
“Hoje, Israel e Ucrânia estão envolvidos no mesmo tipo de guerra. Sabemos disso não porque eles dizem, mas porque seus inimigos dizem. Vladimir Putin acredita que o estado ucraniano é uma ficção. Hamas, Hesbolá e seus patronos no Irã pedem abertamente pela destruição de Israel. Em resposta, ambos os países querem lutar agressivamente, com a visão de que só podem alcançar segurança destruindo a capacidade e a vontade de seus inimigos de fazer guerra.”
O cinismo aqui é impressionante. Não importa o que dizem Putin ou o Irã. A questão é: para que “Israel” quer sobreviver? Para continuar mantendo um regime de apartheid contra o povo palestino. Para que a Ucrânia quer sobreviver? Ora, para servir de base para exercícios militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em resumo: ambos “querem” sobreviver para que o imperialismo sobreviva. E dizemos “querem”, entre aspas, porque quem o deseja não é a sua própria população, mas sim o imperialismo, que, como é a mais poderosa máquia de corrupção do mundo, é capaz de cooptar autoridades públicas em todo o planeta.
Mais que puro cinismo, as declarações do autor contra o Irã e a Rússia são uma provocação contra qualquer país que não esteja alinhado aos interesses do imperialismo. Diz ele:
“Um ‘acordo de paz’ com Moscou que o deixa em posse de vastas áreas do território ucraniano é um convite para uma terceira invasão assim que a Rússia recapitalizar suas forças. Um cessar-fogo com o Hamas que deixa o grupo no controle de Gaza significa que ele inevitavelmente começará outra guerra, assim como fez cinco vezes antes. Também valida a estratégia de usar populações civis como escudos humanos – algo que o Hesbolá certamente copiará em sua próxima guerra em grande escala com Israel.”
Stephens abre o jogo: toda a ladainha sobre a “sobrevivência” é, no final das contas, um pretexto para ter o “direito” de exterminar o seu inimigo. E é justamente aqui que se fundem os interesses do sionismo e do imperialismo em sua atual etapa de crise: como o sionismo sabe que, para os Estados Unidos, é impossível manter a sua dominação se não conseguir destruir países como China, Rússia e Irã, Stephens clama para que o presidente norte-americano Joe Biden ajude “Israel” a destruir os seus inimigos:
“Atualmente, o governo Biden está tentando restringir Israel e ajudar a Ucrânia, enquanto opera sob ambas as ilusões. Está pedindo-lhes para lutar suas guerras de maneira aproximadamente semelhante à forma como os Estados Unidos lutaram suas próprias guerras nas últimas décadas – com meios limitados, um estômago limitado para o que é necessário para vencer e um olho na possibilidade de um acordo negociado. Como é possível, por exemplo, que mesmo agora a Ucrânia não tenha F-16s para defender seus próprios céus? A curto prazo, a abordagem de Biden pode ajudar a aliviar o sofrimento humanitário, acalmar eleitores irritados ou eliminar a possibilidade de escaladas abruptas. A longo prazo, é uma receita para compelir nossos aliados a perder.”
Ainda que, em seu sombrio artigo, Bret Stephens afirme que um “investimento total” dos Estados Unidos na guerra contra seus inimigos seja a única política capaz de tornar o imperialismo vencedor, o fato é que essa mesma política também causará uma série de desastres para o imperialismo. Afinal, não será possível aumentar o esforço de guerra sem atacar economicamente todos os povos, aumentando a tendência à revolta contra a dominação mundial. A própria situação social dos Estados Unidos é muito dramática.
Isso ocorre porque, diferentemente do que Stephens acredita, ou finge acreditar, o imperialismo não está sendo derrotado porque “investiu pouco”. Ele está sendo derrotado porque a derrota é inevitável: é o resultado da decadência do imperialismo e da crescente diminuição de sua autoridade perante os países que oprime em todo o mundo.
O imperialismo está diante de uma encruzilhada. Se não reagir brutalmente, acabará assistindo de braços cruzados ao Irã, à Rússia e à China comandando um grande movimento de libertação da dominação mundial. Se, por outro lado, reagir – e vai reagir, pois é sua única opção -, levará a explosões em todo o mundo.