Nada como o tempo para desmascarar as fanfarronices dos charlatães da política mundial. Hoje em dia, quando a Operação Dilúvio de al-Aqsa se aproxima de seu oitavo mês, é difícil encontrar quem ainda diga que o Estado de “Israel” será o grande vencedor do conflito contra o povo palestino. Mas nem sempre foi assim.
Em 20 de outubro de 2023, o arrogante periódico israelense The Jerusalem Post publicou um artigo escrito por um membro sênior do Instituto de Política do Povo Judeu que dizia Com o que a vitória de Israel sobre o Hamas irá parecer?. Isto é, para o jornal sionista, a vitória israelense já eram favas contadas. De tão confiante no governo israelense, o artigo chega até a tranquilizar aqueles que “já gostariam de ver Israel invadindo o território de Gaza”, afirmando que “o governo e o exército usaram bem as últimas duas semanas”, constituindo uma “incrível base de apoio” no “front diplomático”. O artigo explica também que “o Hamas não pode estar de pé no final deste conflito, ao menos não de uma forma que possa ameaçar Israel novamente“, e propõe que, “da próxima vez que as FDI [Forças de Defesa de Israel] virem um caminhão de foguetes circulando na Cidade de Gaza, deverão atacar; da próxima vez que os combatentes do Hamas estiverem treinando ataques a Israel, as FDI deverão atacar; e da próxima vez que virem pessoas cavando um túnel, precisarão destruí-lo“.
Isso foi há sete meses. No dia 28 de maio, contudo, o mesmo periódico, outrora confiante, publicou o artigo A guerra perdida em Gaza não é o fim de Israel, no qual reconhece, já no próprio título, que a entidade sionista foi derrotada pelo Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) e pelas demais forças palestinas atuando na Faixa de Gaza. O texto, assinado por Mark Lavie e publicado originalmente em The Media Line, é mais que um reconhecimento de que os discursos sobre “exterminar o Hamas” não passavam de bravatas, mas um deplorável chororô dos apoiadores do genocídio do povo palestino diante da cada vez mais iminente dissolução da sociedade israelense.
Em nenhum momento o artigo põe sob dúvida a ideia de que “Israel” sairá derrotado do confronto. No entanto, se esforça para demonstrar que, por mais que a entidade sionista saia derrotada, isso não representará o seu fim.
Poderia parecer uma ideia mais ou menos óbvia. Vários países já perderam guerras e continuam existindo. É o caso da França, é o caso da Espanha, é o caso do Japão, é o caso da Itália e é o caso dos próprios Estados Unidos. Há, contudo, uma gritante diferença: “Israel” é um país artificial, o que significa que qualquer crise tende a levar a um colapso social com muito mais facilidade que um país que represente de fato uma nação.
Os sionistas têm tanta consciência disso que a primeira-ministra israelense Golda Meir, que ocupou o mais alto cargo da entidade sionista durante os anos de 1969 a 1974, afirmou que “se os árabes perdessem uma guerra, eles perderiam uma guerra, mas se Israel perdesse uma guerra, perderia tudo“. Mark Lavie cita a frase de Meir e diz que “ela estava certa — para a sua época”. Não há por que crer que a frase de Meir tivesse validade apenas cinco décadas atrás. Trata-se, na verdade, apenas do desespero dos sionistas, que, diante de sua crise terminal, se apegam a todo tipo de tese que lhe dê algum conforto. É o caso do que vem a seguir, inventado pelo próprio Lavie:
“A guerra de 1973 ameaçou a existência de Israel. Operações heroicas do exército israelense e uma enorme ponte aérea norte-americana de armas e munições salvaram o Estado judeu, mas o deixaram em um trauma profundo que durou décadas. O pogrom de 7 de outubro do ano passado, quando o Hamas enviou milhares de terroristas sanguinários através da fronteira e matou, mutilou, desfigurou e estuprou mais de 1.200 israelenses, a maioria deles civis, levando mais de 200 reféns, traumatizou igualmente os israelenses. No entanto, o Estado em si nunca esteve em perigo de destruição. Israel é muitas vezes mais forte do que era em 1973. Hoje, a derrota em uma guerra é dolorosa, mas não significa perder tudo.”
Nada poderia estar mais distante da realidade. “Israel” é infinitamente mais fraco que 1973. Naquele ano, a entidade sionista, ainda que tivesse enfrentado dificuldades e entrado em uma crise, conseguiu repelir os ataques de três países importantes, o Egito, o Iraque e a Síria. Hoje, “Israel” está demorando meses em uma guerra e está sendo derrotado por grupos guerrilheiros de um país completamente arrasado economicamente. “Israel”, além disso, já detinha a hegemonia militar na região desde a Guerra dos Seis Dias (1967) e havia derrotado o maior inimigo do imperialismo ali, o Egito de Gamal Abdel Nasser. De 1973 para cá, houve a Revolução Iraniana, que transformou o Irã em uma potência militar; houve a primavera árabe, que colocou as ditaduras no Oriente Médio na defensiva; e ainda houve importantes levantes em países próximos, como é o caso do Afeganistão. A situação é infinitamente pior.
O problema, no entanto, vai muito mais além que o enfraquecimento militar da entidade sionista. Uma vez que o Hesbolá vem tendo grande sucesso na fronteira do Líbano com “Israel”, o norte da ocupação está sendo “varrido”. Um alto comandante das forças de ocupação descreveu recentemente o cenário na região como de “guerra total”, o que já provou o êxodo de dezenas de milhares de israelenses. A crise é tão grande que os “colonos” estão dizendo que o seu grande inimigo não é o Hesbolá, mas o “exército” de “Israel”. Não bastasse tudo isso, a economia de “Israel” está à beira do colapso em uma série de setores, incluindo o de energia. Há ainda relatos de aeroportos lotados, com pessoas tentando sair de “Israel”. Em resumo, estamos diante de uma sociedade em dissolução.
O mais interessante, no entanto, é como o sionista pretende lidar com toda essa crise. Diz Mark Lavie:
“Israel deve aceitar estes princípios:
Israel não pode ir contra o mundo sozinho.
Israel não deve lutar contra o Hamas, Hesbolá e Irã por conta própria.”
A própria afirmação já é uma demonstração cabal de que “Israel” está muito, mas muito enfraquecido. O autor diz que “gerações de israelenses cresceram sob a sombra do Holocausto, quando o mundo ficou parado enquanto os nazistas e seus colaboradores assassinavam 6 milhões de judeus“, de modo que “os israelenses foram ensinados que Israel só pode contar consigo mesmo”. Não é bem verdade. De fato, nenhuma potência se levantou contra as monstruosidades da Alemanha Nazista contra os judeus. Mas o massacre não ocorreu contra todos os judeus, mas fundamentalmente contra os judeus pobres. Houve vários judeus que foram “ajudados” pelas autoridades dos países imperialistas, incluindo aí a própria Alemanha Nazista. Por diversas vezes, os pais de “Israel” procuraram firmar acordos com Adolf Hitler – e efetivamente conseguiram firmar alguns.
Se os judeus não tiveram ajuda, a não ser da classe operária europeia, para derrotar o Holocausto, é fato também que os sionistas só conseguiram fundar o Estado de “Israel” com muita, mas muita ajuda do imperialismo. Não fosse o Império Britânico, que interveio de botas no chão para sufocar os levantes árabes e proteger as milícias sionistas, jamais “Israel” teria sido criado. Neste sentido, “Israel” nunca esteve sozinho, em absolutamente nenhum momento histórico.
Mark Lavie hoje se sente sozinho, no entanto, porque, como ele mesmo admite, “o Hamas venceu ao colocar os palestinos de volta no mapa internacional após anos de negligência, tornando Israel um pária no mundo novamente e colocando em risco o grande plano dos EUA de forjar uma aliança entre Israel e nações árabes moderadas“. Dito de outra forma, a ação revolucionária do Hamas fez com que a opinião pública mundial se voltasse contra “Israel”. O problema, portanto, não é que o imperialismo não apoie “Israel” – pelo contrário, “Israel” só continua existindo porque é necessário para a dominação imperialista da região. O problema é que a autoridade do imperialismo em todo o mundo está sendo minada.
“Israel” está, portanto, duplamente em apuros. Sua vantagem militar diminuiu ao longo dos anos e, ao mesmo tempo, o poder de dissuasão do imperialismo também está se esvaindo. Isso fica ainda mais comprovado quando o autor tenta explicar o seu segundo ponto:
“Enfrentando inimigos como o Irã, apoiado pela Rússia e pela China, e ameaças em todas as suas fronteiras, Israel não pode continuar alienando seus aliados naturais no Ocidente e no mundo árabe. A aliança ad hoc que ajudou Israel a repelir o ataque iraniano de centenas de mísseis e drones em abril ilustra isso. Pode significar ceder a algumas exigências que Israel não gosta, mas essa é a nova realidade.”
Nesse trecho, Mark Lavie escancara a fragilidade do imperialismo. O problema de “Israel” não é só de “Israel”. O problema de “Israel” é que seu papai Joe Biden não consegue salvar seus outros filhinhos: falhou na Ucrânia, falhou na região do Sael, falhou na Turquia, falhou no Afeganistão, falhou no Iraque, falhou na Nicarágua e falhou na Venezuela. Se “Israel” não enfrenta mais o Egito nacionalista de Nasser, agora é obrigado a enfrentar a maior potência nuclear do mundo, a Rússia, e a segunda maior economia do mundo, a China. Dois países que não apenas se tornaram poderosos, mas que estão cada vez mais integrados e cada vez mais radicalizados contra a dominação imperialista, arrastando uma constelação de países atrasados atrás de si.
Assustado com a rebeldia dos países atrasados, Mark Lavie corre, então, para apresentar um programa para o Estado de “Israel”. O autor defende uma “mudança de rumo”, que consistiria, necessariamente, na derrubada do governo de Benjamin Netaniahu, por estar muito comprometido com a extrema direita e no final da guerra. De fato, com uma política menos incendiária, que evitasse crises humanitárias como a de Rafá, “Israel” poderia prolongar a sua existência.
No entanto, o plano do autor, ainda que envolva o fim da guerra, estabelece que “a Autoridade Palestina tenha um papel no governo de Gaza após a retirada e deixar a administração de Gaza para eles e seus parceiros árabes“. Isto é, o democrático autor quer impor à população de Gaza quem deverá lhe governar. Aqui, o autor deixa transparecer o que é a essência do Estado de “Israel”: independentemente de quem o governe, é uma ditadura contra as aspirações nacionais do povo palestino. Nem mesmo a proposta supostamente moderada do autor, que prevê o fim da guerra, é de fato uma proposta democrática, pois, para “Israel”, permitir que o povo palestino tenha um partido como o Hamas é impensável. O único partido que os palestinos podem ter é a ala direita do Fatá, que está no bolso do sionismo.
A declaração de Lavie apenas comprova que não há solução possível que envolva uma convivência de “Israel” com o povo palestino em liberdade. E é justamente por isso que “Israel” está fadado à inexistência. Se a única saída é a guerra e se “Israel” está mais enfraquecido que nunca, estamos assistindo aos últimos suspiros da entidade nazista que aterrorizou durante tantas décadas os povos árabes.