Em abril deste ano, o primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, foi impedido de retornar ao país por uma organização conhecida como “Família G9”, federação que reúne uma dúzia de “gangues”, membros da sociedade civil haitiana armados que se rebelaram contra o governo. Henry estava nos Estados Unidos e, em sua viagem ao exterior, chegou a negociar a vinda de milhares de policiais quenianos – conhecidos por sua brutalidade – para que viessem ao Haiti conter o avanço do G9, que efetivamente governa as comunidades pobres haitianas.
O novo conselho presidencial de transição improvisado para governar no lugar de Henry também carece de legitimidade popular. O Haiti atravessa uma dura crise política desde julho de 2021, quando o presidente Jovenel Moïse, que se valia de todo tipo de expediente para evitar novas eleições, foi assassinado, criando um vácuo de poder preenchido por políticos de seu governo umbilicalmente ligado ao imperialismo norte-americano que, se um dia apoiou-se nas gangues que hoje compõem o G9, hoje as ataca recorrentemente através de seus porta-vozes na imprensa.
Para entender as raízes dos problemas que impedem o desenvolvimento do Haiti – e condenam a população do país à miséria extrema – conversamos com Pierre-Erick Bruny, haitiano e advogado radicado no Brasil, em Toledo, no oeste paranaense. Bruny é fundador e líder do movimento MALE (Mouvman Aysyen Lib e Endepandan, ou Movimento dos Haitianos Livres e Independentes), que atua com a diáspora haitiana ao redor do mundo e no Haiti, com apoio à população e iniciativas para sua formação política. O conteúdo completo da entrevista de cerca de uma hora será publicado íntegra neste Diário ainda esta semana.
Bruny chegou ao Brasil há nove anos e estabeleceu-se em Minas, onde não conseguiu concretizar sua ambição de estudar para retornar ao Haiti e ajudar seu país. O plano só foi colocado em marcha quando conseguiu mudar-se para Maringá, no Paraná, onde cursou a Faculdade de Direito.
Sua iniciativa para organizar o povo haitiano em defesa de sua soberania, pelo desenvolvimento do país e contra o imperialismo, começa em 2017, mas é em 2 de junho de 2023 que isso se transforma no MALE, que tem representantes no Chile, República Dominicana, Estados Unidos, Canadá e, naturalmente, no próprio Haiti. O lema de sua organização é “construir o haitiano para a reconstrução do Haiti”.
Colocamos a Bruny o desafio de explicar brevemente a crise haitiana.
“Para entendemos a atual situação do Haiti, isso nos leva ao contexto histórico. Temos que lembrar que a independência do Haiti foi uma luta, o Haiti foi o primeiro país negro a conseguir a independência de forma mundial e foi a segundo país na América depois dos Estados Unidos.”
A Revolução Haitiana, porém, foi traída e os sucessores de Jean Jacques Dessalines no poder organizaram uma compensação aos franceses pela independência em 1825, que levou 122 anos para ser paga. Além disso, Bruny relata como os haitianos sofreram com uma ocupação militar na qual “os norte-americanos ficaram no Haiti durante um período de 19 anos desde 1915 até 1935”. O país foi então esmagado pela ditadura de “Papa Doc” e seu filho “Baby Doc” porque os Estados Unidos “tinham medo de ter alguém no poder com o mesmo cunho que Fidel Castro” no Haiti.
Segundo Bruny, após o fim da ditadura, a pressão imperialista no país teria viabilizado o estabelecimento das gangues que dariam origem ao G9. Para ele, esses grupos “não são moralmente aceitáveis perante a sociedade haitiana” e apesar de seu enfrentamento momentâneo contra os títeres imperialistas no país, não têm futuro político. Com a estabilização de um governo pró-imperialista no país, possivelmente viabilizada por uma intervenção militar, as gangues “serão eliminadas um a um como historicamente acontece no Haiti”, disse Bruny.
“Dentro desse movimento nós entendemos e nós compreendemos e sempre foi assim… as gangues do Haiti. São financiados pelo mesmo sistema: é um jogo de poder. Quem entrega as armas e munições para eles são os mesmos norte-americanos [que apoiam o governo]”.
Bruny acrescenta que Jimmy “Barbecue” Chérizier, líder do G9, já atuou a serviço do governo ex-presidente Moïse na repressão de setores rebelados da população, ainda que hoje tenha um discurso diametralmente oposto em relação ao governo haitiano.
Sobre as intervenções, inclusive a organizada pela ONU na qual o Exército Brasileiro teve participação vergonhosa, Bruny relata que sempre “deixaram o país numa condição miserável muito pior” do que antes que entrassem no país.
Sobre o programa do MALE para o Haiti, Bruny destacou:
“Nós temos que construir haitianos capazes realmente de colocar o bem comum antes de tudo. Capazes de realmente construir um país que tenha uma soberania. Nós temos que construir, o MALE tem essa proposta, de construir o haitiano para que esses haitianos possam construir um sistema educacional forte, uma economia forte, uma agricultura forte, capaz de responder às necessidades haitianas. Porque se nós continuamos fazendo política dessa mesma forma, sem essa construção, sempre nós vamos ter pessoas que vão vender o Haiti… por um visto, por um carro, por uma casa.”
Para o líder haitiano também é fundamental a questão da agricultura, para que o Haiti tenha soberania, seja autossuficiente nessa necessidade básica, a alimentação, e possa enfrentar a pressão imperialista.
“Estamos trabalhando em muitos países porque entendemos que os haitianos em qualquer país que estejam tem uma parte da contribuição da reconstrução do Haiti. E, ao mesmo tempo, nós temos equipe lá no Haiti estão indo e encontrando as pessoas para fazer formação”, continua.
Finalmente, quando questionado se a luta do povo palestino era uma inspiração para seu movimento, Bruny respondeu que almeja para o povo haitiano a mesma determinação.
“Nós realmente enxergamos na resistência palestina como algo surpreendente que nos faz lembrar de quando nossos parentes eram escravos. Quando eles realmente lutaram contra o exército inglês, contra os espanhóis, contra a França. Era a resistência por uma causa, pela liberdade. Mas não era somente uma liberdade para os haitianos, é uma liberdade universal, é uma liberdade de todos os povos do mundo”