– Fábio Picchi, ao DCO, dos Estados Unidos
Em toda a riqueza gerada pela economia norte-americana (US$ 27,3 trilhões em 2023), o país mais rico do mundo ainda não conseguiu superar um problema muito familiar para quem vive em qualquer grande cidade latino-americana: a questão da moradia. É por isso que dezenas de famílias se organizaram na região de Boston, onde é praticado o terceiro maior aluguel dos Estados Unidos.
No último dia 9, tivemos a oportunidade de participar de uma das reuniões de City Life, também conhecido como Vida Urbana pelo grande número de membros e simpatizantes da organização que falam espanhol. A reunião ocorreu num prédio comunitário no limite da cidade e estava cheia. Dezenas de pessoas participaram presencialmente e mais algumas dezenas estavam conectadas pelo Zoom, plataforma de videoconferência.
Fomos convidados ao evento graças a Tatiane Oliveira, militante do Partido da Causa Operária que vive nos Estados Unidos há mais de duas décadas e na região de Boston há pelo menos 11 anos. Oliveira recebeu ordem de despejo durante a pandemia, mais especificamente durante o inverno rigoroso do final de 2021, início de 2022. O edifício em que morava – onde viviam 4 famílias e operavam 4 negócios – havia sido vendido a uma escola particular que queria demoli-lo para criar uma nova unidade de seu empreendimento. Foi dado o prazo de apenas algumas para deixarem o prédio, sem que se preocupassem com o destino dessas famílias ou se conseguiriam alugar um lugar por preço similar diante dos crescentes aluguéis praticados na região metropolitana de Boston.
Nossa reportagem pode ver o local onde originalmente encontrava-se o prédio em que Oliveira morava, atualmente um terreno vazio. Mas se sua família teve que se mudar, não o fizeram nas condições apresentadas pelos novos proprietários. Resistiram por meses ao despejo até conseguirem um acordo, graças à luta de Oliveira apoiada por City Life, que lhe explicou seus direitos, apoiou-a nos procedimentos legais e ajudou os moradores do prédio a organizarem protestos contra os proprietários, o que atraiu a atenção de autoridades políticas municipais e estaduais.
Organização exemplar
Ao chegarmos na reunião, Oliveira nos apresentou às lideranças de City Life e rapidamente nos sentamos para acompanhar a reunião. Todos tinham uma ata impressa apresentando aquilo que seria discutido. O bloco inicial tratava dos problemas imediatos de novos integrantes do movimento. Pudemos inclusive presenciar uma pequena cerimônia de recepção desses novos membros. As lideranças de City Life usam uma espada como alegoria para a mobilização popular, que ataca os especuladores e os proprietários praticando aluguéis abusivos, e um escudo para representar o embate legal que protege os moradores de Boston dentro dos limites do direito burguês. Finalmente, os novos integrantes se comprometem a lutarem com seus demais companheiros porque somente unidos podem resistir – e potencialmente derrotar – seus opositores.
Após esse bloco inicial há um espaço reservado para discussão política. Fomos convidados a apresentar um pouco sobre a situação brasileira em relação à moradia. Nossa intervenção foi recebida de forma muito positiva. Fizemos um comentário geral sobre a financeirização da economia e seu impacto nos preços eternamente crescentes de imóveis, a despeito da oferta e da demanda; falamos sobre os inúmeros imóveis vazios, tanto comerciais como residenciais, nas grandes metrópoles resultantes da política de controle de preços imposta pelos bancos; e, finalmente, falamos sobre a luta no Brasil, que se dá em grande medida por ocupações seja de imóveis abandonados, seja de terras na periferia das grandes cidades brasileiras, base dos nossos bairros populares, das favelas.
Na sequência houve um debate com duas lideranças da greve de funcionários da Universidade de Boston. Como Tatiane nos explicaria após a reunião, City Life não se limita a sua atividade com os inquilinos da região e está sempre presente em manifestações de outras categorias, como esteve em greve de professores e como está agora apoiando os técnicos universitários.
Caminhando para o encerramento, foi apresentada uma agenda de eventos. Alguns eram organizados pelo próprio movimento, como o final de semana cultura do City Life utilizado, entre outras coisas, para criar materiais de campanha para panfletos, camisetas, faixas. Um dos membros do movimento também tinha o julgamento de seu caso agendado para o dia 17 de abril, e foi comunicado que todos os integrantes deveriam estar presentes para pressionar o juiz. Dentre os eventos havia o próprio protesto dos funcionários da Universidade de Boston.
No final da reunião ocorreu uma das coisas mais interessantes. Pessoas precisando de apoio legal foram encaminhadas para jovens estudantes de Direito que se voluntariam para as defender gratuitamente. Naturalmente, uma pessoa passando por um processo de despejo, sem dinheiro sequer para seu aluguel, não pode pagar um advogado. Essa relação sedimenta a solidariedade com estudantes e trabalhadores da Universidade de Boston. Nesse momento foram distribuídos lanches e bebidas para todos os participantes.
Trabalho bilíngue
A organização dos participantes e da reunião, que acontece semanalmente, foi surpreendente. Ainda mais surpreendente foi que no dia seguinte haveria outra reunião para a qual também estávamos convidados. A agenda era muito parecida, mas voltada para os inquilinos que falam espanhol.
Na quarta-feira o evento foi no salão comunitário de uma igreja, que gentilmente oferece o espaço para Vida Urbana. Ao chegarmos pudemos notar que a estrutura do evento do dia anterior estava perfeitamente replicada, com participantes via Zoom e lanches aguardando o final da discussão. Havia uma novidade, porém, que era uma das organizadores responsável pela tradução simultânea de espanhol para inglês, no caso de intervenções em espanhol, e vice-versa.
Nossa intervenção foi muito bem recebida, inclusive quando mencionamos que o Partido da Causa Operária é uma organização trotskista. Uma das presentes nos disse ao final da reunião que estava lendo a autobiografia do revolucionário russo Leon Trótski e que ficou feliz em saber que carregamos seu legado. É apenas mais um indício de que, apesar de não estarem organizados em partido, são uma organização extremamente politizada e ciente de que a luta por moradia vai além da solução de problemas imediatos de inquilinos e da batalha legal dentro da lógica do regime capitalista, ela passa pela organização da classe operária e pela luta política. São tão conscientes disso que o espaço de discussão política ocupa metade, cerca de uma hora, de suas reuniões semanais que têm inúmeros problemas imediatos relacionados à moradia para tratar.
Monopólio do bem?
Por fim, participamos no dia 11 de abril de uma reunião reduzida para tratar de um problema relacionado diretamente a Tatiane e outro integrante de City Life, originalmente vizinho dela em seu antigo prédio, Eduardo. Ambos farão parte de um programa que em inglês recebe o nome de Community Land Trust. Funciona como um monopólio às avessas. A ideia é que City Life adquira terreno na cidade através do apoio de seus membros e de doações ao ponto que possa fixar o aluguel a um preço razoável, imune à especulação imobiliária. Um monopólio construído pelo movimento para fixar um preço baixo, não para cobrar o quanto o mercado aguentar, como fazem os grandes trustes.
Até agora falamos que City Life atua na região de Boston, mas Tatiane e Eduardo moram em Malden, cidade menor nas imediações da metrópole histórica norte-americana. Uma das moradoras dessa pequena cidade doou a casa de seu pai para o movimento, que transformou o terreno na pedra angular do projeto em Malden.
Pelo que pudemos entender de nossa conversa com os presentes na reunião, incluindo Mike Leyba, codiretor executivo de City Life, não há a pretensão de que essa iniciativa vá acabar com a sanha especulativa dos grandes bancos. Ainda assim, resolverá de imediato o problema de Tatiane e Eduardo que terão acesso a uma moradia estável para suas famílias. Sem esse problema nas costas, podem se dedicar não apenas à luta pela moradia digna, como à luta por uma sociedade na qual a moradia não seja uma mercadoria como outra qualquer, mas um direito básico.