Em artigo intitulado “Como nasce uma fake news e o modus operandi cirúrgico da extrema direita mundial para derrubar democracias” e publicado no portal Brasil 247 no último dia 12, a jornalista Laís Gouveia expressa um espanto comum à pequena-burguesia “bem pensante” ao comentar uma fala do colega, jornalista norte-americano, Michael Shellenberger, que em audiência no Senado Federal, comentou o caso Twitter Files (“Arquivos do Twitter”, em português). “No entanto”, escreveu Gouveia, “para além de espalhar mentiras ao vento, o jornalista cometeu outro crime na sessão: disse que ‘achou incrível uma manifestação nazista em um bairro judeu’ e afirmou que isso mostra o ‘compromisso com a liberdade de expressão’”, escandalizou-se a comunicadora.
Ocorre que Shellenberger está absolutamente certo ao afirmar que a solidez da liberdade de expressão, um princípio basilar de qualquer regime minimamente democrático, se afirma em eventos como “uma manifestação nazista em um bairro judeu.” Muito embora Gouveia não explique o motivo do seu espanto, o fato é que do ponto de vista do Estado, o mesmo princípio que o permitir impedir uma manifestação como a citada, também permite impedir qualquer manifestação em qualquer lugar.
Durante um dos períodos mais tenebrosos da história do País, a Ditadura Militar (1964-1985), em nome da segurança nacional e até mesmo de defesa da “democracia”, foi imposto ao Brasil um regime de terror contra a classe trabalhadora, no qual nenhuma reivindicação ou manifestação era permitida. Jornais eram impedidos de circular e mesmo órgãos controlados pelo imperialismo eram alvos de censura, fenômeno de conhecimento público, o que torna ainda mais espantoso que jornalistas relativizem o direito à livre expressão do pensamento. Não é, no entanto, tão estranho quando se analisa o problema de um ponto de vista de classe.
Sendo um setor social que em condições normais aspira ascender à burguesia, a pequena-burguesia apresenta uma forte tendência a aceitar os horrores do sistema capitalista, a relativizar a epidemia de fome, as guerras e todas as catástrofes monstruosas que o regime político produz. Os momentos revolucionários produzem uma mudança no espírito da pequena-burguesia, mas fora os períodos de excepcional polarização, o mais normal é a submissão e a disposição nula para uma luta política consequente.
Em decorrência disso, nada mais normal que desprezem o direito à livre expressão. O mesmo não se dá com os trabalhadores. A classe operária depende da liberdade para expressão para conseguir se organizar, enfrentar a burguesia e fazer valer, desde interesses básicos e mais imediatos, como reajustes salariais, até a conquista do poder.
Sendo a classe dominante, a burguesia não precisa do direito para conseguir se organizar, uma vez que sempre terá mecanismos para propagandear e defender seus interesses. A censura ao nazismo sob o pretexto de impedir o enaltecimento de regimes tirânicos ou algo que o valha, por exemplo, não impede à classe dominante de manobrar o regime de modo a colocar em funcionamento um partido com estas características.
Na Alemanha, por exemplo, a proibição ao nazismo não impediu o surgimento de um partido como o Alternativa para a Alemanha, mas durante anos, serviu para impedir a existência de um partido verdadeiramente revolucionário. No Brasil, as restrições à liberdade de expressão sob pretexto de impedir o racismo jamais tiveram qualquer efeito prático positivo, mas serviu para ameaças que ainda pairam contra o PCO e outros defensores da Palestina (como o jornalista petista Breno Altman), que enfrentam ameaças de repressão e censura por “crimes” como o racismo, do qual foram acusados por denúncias dos verdadeiros crimes e o genocídio cometido por “Israel” nos territórios palestinos.
Conquista civilizatória do iluminismo solidificada nos EUA em decorrência da Revolução Norte-americana, a liberdade de expressão já não é um valor tão caro à decadente cultura política americana como foi no passado. Ainda assim é maior lá, o que frequentemente causa surpresa na classe média esquerdista, mas revela, acima de tudo, a pouca disposição dos trabalhadores norte-americanos em serem tratados como seres inferiores, que podem ser calados por autoridade.
Gouveia e a esquerda pequeno-burguesa se espantam com isso por acompanharem a política do sofá e não da mobilização real dos trabalhadores. Fosse o contrário, jamais se escandalizariam com nazistas fazendo manifestação, mas procurariam mobilizar a classe operária para enfrentá-los politicamente.
Como não é essa a política da classe a que a jornalista pertence, ela (e sua classe) defendem uma submissão à burocracia, que force os inimigos do momento a calar-se. Este sim é uma forma cirúrgica de impulsionar o fascismo que a pequena burguesia acredita estar combatendo.