Em artigo intitulado A hora da verdade do art. 359-M, publicado por O Estado de S. Paulo, o advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti faz uma série de considerações acerca do processo jurídico contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a fim de preservar o processo contra eventuais vícios. Trata-se, portanto, de uma tentativa de defender a condenação do ex-presidente.
Na primeira parte do texto, o autor apresenta uma análise bastante precisa sobre como o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), vem levando o processo adiante:
“Até o momento, o que existe é um inquérito sigiloso, no qual tem havido divulgação seletiva de alguns elementos probatórios. (…) Essa divulgação seletiva é muito útil para gerar determinadas impressões na sociedade, mas é muito prejudicial para um processo judicial adequado, apto a pacificar os conflitos sociais. É como se a própria Justiça estimulasse juízos parciais pela população, com condenações imediatistas, que eliminam, na prática, a presunção de inocência. (…) Esse modo de proceder tem relação direta com um problema sério e, infelizmente, muito frequente na Justiça brasileira: a análise superficial dos fatos. (…) Para condenar alguém, não basta ter uma opinião sobre o que teria ocorrido.”
A única coisa que o advogado poderia ter acrescentado é que o processo como um todo já é ilegal em si porque se trata de uma investigação em que Alexandre de Moraes é, ao mesmo tempo, vítima, juiz e investigador. Algo que impossibilitaria qualquer processo pretensamente legal.
Embora correto no que diz respeito às críticas à filtragem de informações por parte de Moraes, Cavalcanti acaba errando quando analisa o artigo 359-M do Código Penal – um artigo redigido e sancionado durante o governo Bolsonaro e, portanto, parte do arcabouço jurídico constituído após o golpe de 2016. O artigo estabelece uma pena de quatro a 12 anos de cadeia para quem “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Corretamente, o advogado questiona: “o que significa ‘tentar depor’ o governo legitimamente constituído? O que constitui uma ‘grave ameaça’?”. No entanto, em vez de chegar à conclusão de que a formulação é abstrata e que, portanto, não deveria existir enquanto lei, ele se propõe a tentar explicar a legislação:
“A tipificação do ‘tentar depor’ foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe. Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359-M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada.”
Em resumo: para ele, não haveria sentido proibir apenas golpe de Estado, pois, uma vez que o golpe de Estado esteja dado, não haveria como exigir a aplicação da lei. Sendo assim, seria justificável punir a mera “tentativa” do golpe de Estado.
Essa explicação, no entanto, não dá conta de explicar o que seria a tal tentativa. Se a legislação visa punir não somente uma marcha de militares rumo ao Palácio do Planalto, mas os preparativos para tal, qual seria o critério para definir o que é ou não um preparativo? Publicar um panfleto defendendo um golpe de Estado é uma “tentativa”? Publicar um tuíte ameaçador, como fez o então comandante Eduardo Villas-Bôas nas vésperas do julgamento do habeas corpus do hoje presidente Lula, é uma “tentativa”? Incentivar protestos contra o sistema eleitoral é uma “tentativa”?
Não há resposta para isso, nem na lei, nem no texto. Como, então, identificar a “tentativa”?
O advogado responde. A tentativa seria definida não pelo conteúdo, mas pela forma:
“O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar ‘por meio de violência ou grave ameaça’.”
Isto é, o que vai determinar se houve ou não uma tentativa de golpe de Estado não é propriamente no que consistia a ação, mas sim se ela viesse acompanhada de “violência” ou de “grave ameaça”. Trata-se, obviamente, de mais abstrações.
Comecemos pelo seguinte: se a “tentativa” não foi definida, então qualquer coisa que empregue violência pode ser considerada tentativa de um golpe de Estado? Por exemplo: se um funcionário da Sabesp invadir o Palácio do Planalto em um protesto pacífico, não seria uma “tentativa”, mas, caso invadisse e quebrasse vários objetos, seria uma “tentativa”?
E, pior de tudo: o que seria uma “grave ameaça”? O termo é tão vago que o advogado apresenta uma reunião como exemplo de “ameaça”:
“Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, ‘não podemos deixar o Lula assumir’.”
A própria expressão utilizada por Cavalcanti não deixa margem para dúvidas: ele “entende” que seja uma grave ameaça, mas ela não o é objetivamente.
As considerações iniciais do advogado sobre os métodos de Alexandre de Moraes, portanto, não são críticas no sentido de demonstrar a ilegalidade do processo, mas sim de tentar preservar um processo que é claramente ilegal. É uma tentativa de disfarçar ao máximo possível a arbitrariedade de um artigo do Código Penal que simplesmente não deveria existir.