Um dos maiores problemas da esquerda pequeno-burguesa é a questão do golpe. Para eles, ou não há golpe, ou o golpe foi derrotado, ou é preciso se aliar com aqueles que são os piores golpistas. O que nunca há é luta contra o golpe, e esse é o maior erro de todos. O argumento falho que se repete agora é que os militares foram derrotados, não pela luta dos trabalhadores, mas pelo Judiciário – seria a primeira vez na história brasileira. Esse é o argumento do colunista do Brasil 247 Moisés Mendes em seu artigo O enterro dos ossos e o apocalipse dos militares golpistas.
Ele começa o texto aproveitando o clima de Carnaval para fazer analogias. Então afirma: “o fim do mundo anunciado por Baby do Brasil pode não ter chegado para todos os brasileiros, como a foliã-crente vislumbra. Mas chegou para os generais. É a hora do anjo do arrebatamento sobrevoar os quartéis“. O extremo otimismo de que um dos maiores dos inimigos dos trabalhadores está sendo “arrebatado” precisa ser provado com argumentos. Entra, então, a análise das operações da Polícia Federal, a serviço do STF, contra militares bolsonaristas.
Ele afirma: “os generais de Bolsonaro acabaram, 135 anos depois do golpe de 1889, com as Forças Armadas como instituição capaz de orientar, como e quando bem entendessem, o que seria certo e errado para o país. É uma falsa prerrogativa de força que está condenada a desaparecer“. A análise histórica está um tanto errada, a atual configuração das Forças Armadas se formou após a Segunda Guerra Mundial, principalmente devido ao controle dos norte-americanos.
Entrando no argumento de Moisés, uma poderosa organização que tem enorme força no regime político há 135 anos teria sido derrubada por uma operação da Polícia Federal. Fato é que, em toda a América Latina, os militares pairam sobre os regimes políticos devido à intervenção dos EUA ao longo do século XX. Onde isso não acontece? Cuba, Nicarágua e Venezuela, ou seja, países onde aconteceram gigantescos processos sociais para derrubar o poder dos militares. Em dois deles, inclusive, houve uma verdadeira revolução.
No Brasil, nem no fim da ditadura militar, quando houve uma gigantesca mobilização operária contra os generais, eles foram “arrebatados”.
O autor então começa a divagar sobre o suposto golpe que fracassou:
“Não há como aplicar um golpe com um general da reserva, já de pijama e sem tropas, chamando de cagão outro general, da ativa e com quartéis e soldados, como fez Braga Netto com o então comandante do Exército, Freire Gomes.”
De fato, não se dá um golpe militar sem tropas, qualquer militar sabe disso. Seguindo este argumento, então, não houve tentativa de golpe! Ele segue:
“Não havia como prosperar um golpe com um líder com baixa autoestima, que reconhecia ter sido eleito por uma grande cagada nacional. Que se autodefinia como um ex-deputado fodido, do baixo clero (mas nem do baixo clero ele era).”
A baixa autoestima não é nem de longe um fator determinante na luta pelo poder. Muitos golpistas históricos podem ser taxados de “políticos de baixa autoestima”, mas na hora do golpe, quando foram apoiados por grandes forças políticas, se tornaram violentos ditadores. Um caso emblemático é o do Xá do Irã, a baixa autoestima do rei não teve valor nenhum, já o apoio da CIA definiu o golpe de 1953.
E os argumentos terríveis não param: “Baby do Brasil sabe que ninguém leva adiante um golpe liderado por gente que se declara vítima de bullying, já adulto, por ser um fascista solitário. Não há golpe liderado por alguém com inteligência bem abaixo da média”. Aqui, a própria realidade contradiz Moisés. Bolsonaro pode até ter inteligência abaixo da média, mas, mesmo assim, foi capaz de vencer as eleições em 2018 contra Haddad e quase vencer de Lula em 2022. As eleições são bem mais complexas que um golpe militar. Sem contar no fato de que muitos dos piores ditadores foram taxados de louco e chegaram ao poder, os casos mais emblemáticos foram os próprios Hitler e Mussolini.
O colunista então volta ao argumento histórico: “eles [os generais] construíram o próprio fim, depois que antecessores falharam várias vezes. Falharam em 1955 porque havia um general chamado Teixeira Lott. Falharam em 1961 porque havia Brizola. Insistiram e venceram em 1964. Fizeram a farra por 20 anos e tiveram até o direito de enterrar e esconder os ossos das suas vítimas com a anistia de 1979“. Moisés poderia ser mais sincero e falar também da vitória ao derrubarem Vargas em 1945 e em 1954, da vitória ao derrubar Dilma em 2016 e ao prender Lula em 2018 e assim eleger Bolsonaro.
Mas a questão principal não é quantas vezes falharam ou não, é como e por quê. Em 1954, por exemplo, houve uma gigantesca mobilização popular após o golpe contra Vargas, o presidente caiu, mas o golpe não impôs a sua política. Em 1964 não houve mobilização, a esquerda confiou nas instituições democráticas, que é o mesmo que faz a esquerda pequeno burguesa hoje. Os “democratas” todos, incluindo o STF, apoiaram o golpe. O golpe de 2016 só foi parcialmente derrotado pela enorme mobilização que se fez em torno da liberdade de Lula e depois por sua presidência. Repetindo o ponto principal: militares só podem ser derrotados pela luta dos trabalhadores.
E assim Moisés, tal qual seu homônimo bíblico, encerra o artigo com uma profecia: “Baby do Brasil diria que não só a punição do sistema de Justiça dos homens, mas também a punição maior do Senhor, que não perdoa golpistas fracassados, muito menos cagões que dizem falar em seu nome”. Tirando o Oriente Médio, onde Alá está aliado à luta nacionalista dos países oprimidos, o “Senhor”, isto é, as igrejas não costumam atuar em defesa dos trabalhadores. O Judiciário muito menos.
Deixar a luta contra o golpe nas mãos de deus e do STF (quase um pleonasmo) pode parecer genial para a esquerda pequeno-burguesa. Mas foram teses como essas que levaram a todas as ditaduras militares na América Latina. Não só as do século XX, mas também os golpes de 2016 no Brasil, de 2019 na Bolívia, de 2022 no Peru e tantos outros pelo mundo. O “arrebatamento” dos militares só virá por meio de um enorme levante da classe operária brasileira.