“Estou aqui, de coração aberto, buscando fazer a primeira convocação do meu momento: o torcedor brasileiro. Que ele passe a viver um pouco mais a sua Seleção, que ele acredite um pouco mais em sua Seleção […] A partir de agora, não é a Seleção do Dorival, é a Seleção do povo brasileiro.”
Essas foram algumas das frases mais marcantes da primeira coletiva de imprensa de Dorival Júnior, o mais novo técnico da Seleção Brasileira. E é com esse espírito que o nosso futebol deve ser encarado.
O futebol brasileiro passa por uma crise grave. Nas últimas décadas, o imperialismo tem se empenhado em jogar a Seleção para baixo, seja por meio de manipulações grotescas, como foi o caso da Copa do Mundo de 2022, na partida do Brasil contra a Croácia válida pelas quartas de final; seja por meio de uma campanha intensa na imprensa burguesa que procura caluniar o esporte nacional de todas as formas possíveis.
Apenas nos últimos anos, por exemplo, foram centenas as colunas escritas por Casagrande e Juca Kfouri cuspindo em cima da Seleção, procurando moralizar o futebol europeu sobre o nosso.
E toda essa campanha, pelo tamanho do aparato da imprensa burguesa, acaba afetando a moral da Canarinho e, acima disso, a moral do povo brasileiro com seu próprio futebol, o melhor do mundo.
Mas isso não é de hoje! Na sua época, Nelson Rodrigues, um dos maiores jornalistas esportivos da história do Brasil, já falava sobre o que ele chamava de “complexo de vira-lata”, criticando os ataques da imprensa ao futebol nacional e valorizando as conquistas da Canarinho.
Com a convocação de Dorival, inicia-se, ao que tudo indica, uma nova fase no processo da Seleção de superar a atual crise. Frente a isso, reproduzo, neste artigo, uma das crônicas de Rodrigues publicada na revista Manchete Esportiva em 19 de maio de 1956, intitulada Abaixo a Humildade!. É esse o espírito que o novo técnico da nossa seleção deve ter nos próximos anos. Rumo ao Hexa!
Abaixo a Humildade!
Nelson Rodrigues
Contexto da crônica: Brasil 0x0 Tcheco-Eslováquia, 21/4/1956, em Praga. Brasil 0x3 Itália, 25/4/1956, em Milão. Brasil 1×0 Turquia, 1/5/1956, em Istambul. Brasil 2×4 Inglaterra, 9/5/1956, em Londres. Demais amistosos do escrete naquela excursão.
Eu sempre me lembro daquele personagem de Dickens que vivia clamando pelas esquinas: – “Eu sou humilde! Eu sou muito humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!”. Era demais, como se vê. Mas, essa humildade espetacular e, por vezes, agressiva, já intimidava e acuava vizinhos, parentes, conhecidos e até desconhecidos. Quando ele passava na rua, havia, de imediato, o cochicho invejoso e consagrador: – “Lá vai o humilde!”. E o fulano não parava em casa, vivia saindo, para melhor passear e melhor exibir a sua insolente humildade.
Pois bem: – O brasileiro tem um pouco de personagem de Dickens. Eu disse “um pouco” e já amplio: _ Tem muito. Se examinarmos nossa história individual e coletiva, esbarraremos, a cada passo, com exemplos inequívocos e indeléveis de humildade. Por exemplo: a recentíssima jornada do escrete brasileiro em canchas europeias. Foi algo de patético. No dia mesmo do embarque, vem o nosso técnico Flávio Costa e, a babar de humildade, anuncia: – “Nós vamos aprender!”. Vejam vocês: aprender! Vinte e quatro horas depois, a declaração soava e ressoava no berro impresso das manchetes. Quem dizia isso não era um qualquer, mas alguém investido da autoridade e da clarividência de técnico do time.
Quem leu ou escutou a advertência teve todo o direito de pensar que o escrete era analfabeto em futebol. De qualquer maneira, não se podia desejar uma humildade mais compacta e mais refalsada. Um retrospecto de nossos resultados internacionais teria, talvez, justificado uma manifestação ereta e viril e não esse esgar de subserviência. Afinal, éramos, na pior das hipóteses, os vice-campeões do mundo. E fizermos, na Copa da Suíça, um jogo pau-a-pau com os divinos húngaros.
E, assim, imersos até o pescoço numa vil modéstia, lá partiram os nossos craques para aprender na Europa. Mas já não constituíram uma equipe briosa, entusiasta, segura de si mesma e dos próprios méritos. Com um piparote o Sr. Flávio Costa dizimara toda a euforia, devastara todo o élan dos nossos rapazes. Ao sair daqui, o escrete está amadurecido para a derrota. O raciocínio é claro: se íamos aprender, nada mais natural que os mestres europeus nos infligissem pesadas derrotas.
Eis a verdade: a primeira derrota da representação, o primeiro empate, o primeiro fracasso foi quando se disse, aqui, que “íamos aprender”. Essa humildade real e não simulada é que nos desfibrou em Lisboa, na Suíça, em Praga, em Milão, em Londres. Como explicar o colapso em Wembley? Foi a humildade, sempre a humildade. Dias antes, com efeito, o Sr. Sílvio Pacheco concedera entrevista em Londres. Perguntado se o escrete brasileiro tinha alguma possibilidade no Mundial de 58, respondeu com pomposa e hedionda certeza: – “Nenhuma!”. Em suma, o presidente da CBD desfraldou a humildade nacional com o impudor de uma manchete. Com dois anos de antecipação, ele derrotou a equipe nacional. Como explicar essa instintiva, essa incontrolável tendência para a autonegação? Será o servilismo colonial que acometeu também o futebol?
Ou expulsamos de nós a alma da derrota ou nem vale a pena competir mais. Com uma humildade assim abjeta, ninguém consegue nem atravessar a rua, sob pena de ser atropelado por uma carrocinha de Chica-bom.
(Manchete Esportiva, 19/5/1956)