No último sábado, 9 de dezembro, a Sessão Chama Curtas, do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, localizado no centro do Recife, recebeu a Mostra de Cinema Árabe Feminino, que exibiu quatro curta-metragens da diretora palestina Larissa Sansour. Após a exibição, ocorreu um debate com Carol Almeida, presente na sala de cinema para explicar detalhes das obras. Após o debate, Carol Almeida concedeu uma entrevista à nossa equipe.
Carol Almeida é pesquisadora, professora e trabalha com curadoria de cinema, participando da programação de algumas mostras e alguns festivais de cinema, entre eles a Mostra de Cinema Árabe Feminino.
Diário Causa Operária: Qual é o principal objetivo da mostra?
Carol Almeida: A Mostra de Cinema Árabe Feminino, eu acho que o principal objetivo dela é justamente fazer circular no Brasil uma produção intensa de realizadoras do mundo árabe, e aí quando eu falo o mundo árabe, isso significa todo o território que fala árabe, então, é do norte da África ao território do Oriente Médio. E a gente tem muitas realizadoras com obras muito interessantes, falando sobre absolutamente tudo, elas não falam sobre uma coisa só. Muita gente acha que a mostra de cinema árabe fala sobre a condição feminina das mulheres no mundo árabe. Não. Tem filmes que falam também sobre isso, mas definitivamente não é só sobre isso. Muitos dos filmes falam sobre a luta por território, não só do território palestino, mas sobre outros territórios também. Falam sobre as especificidades, por exemplo, do que é viver no Magrebe, que é aquele território do norte da África. Falam, enfim, da experiência, por exemplo, de ser uma pessoa queer em territórios do mundo árabe, enfim, são várias questões, e eu acho que é um cinema que me anima muito pelas qualidades estéticas. São filmes que trazem, às vezes, uma proposta estética muito radical, que quebra a ideia de um cinema narrativo hollywoodiano. Então, esses filmes me animam por isso, porque eles trazem uma radicalidade na forma também.
DCO: O que você poderia falar sobre a diretora dos filmes expostos, Larissa Sansour?
CA: Eu acho que foi muito importante a gente ter trazido esses quatro filmes da Larissa Sansour, porque talvez hoje seja uma das realizadoras palestinas mais debatidas. Ela não é a mais importante, nem nada, mas é uma das mais debatidas, porque, como eu falei, ela circula tanto num ambiente de cinema quanto no ambiente das artes visuais. Ela está nas grandes bienais de arte com os filmes dela. Por que eu acho que é importante trazer a obra da Larissa Sansour? Porque, por exemplo, não é um cinema que, porque a gente vai falar da Palestina, a gente vai fazer cinema documental, a gente vai mostrar imagem. Não. A Larissa está toda hora fazendo ficção científica. É uma diretora que trabalha com o gênero ficção científica para falar desse deslocamento no tempo em que a Palestina vive, de estar toda hora dentro de um passado e tentando imaginar um futuro sem conseguir viver dentro de um presente. Porque o presente é só massacre. Então, ela trabalha isso a partir de um registro de ficção científica, ou seja, um registro de cinema de gênero. E eu acho muito importante que a gente comece a pensar também quais são as formas estéticas que a gente usa para criar lutas no mundo, né? Não é só o cinema documental. A ficção científica é uma ferramenta de luta também nesse caso.
DCO: E como é que tem sido a recepção?
CA: A mostra de Cinema Árabe, ela tradicionalmente acontece em três cidades do Brasil, que é Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. É a primeira vez que esses filmes estão aqui no Recife. E a gente está tentando – quando eu digo a gente, é Analu Bambirra, que é produtora e curadora da mostra, e eu – levar a particularmente dos filmes de Larissa Sansour, com quem a gente tem uma relação mais próxima. Assim é mais fácil. A diretora precisa autorizar a exibição desses filmes, então ela está autorizando a exibição desses filmes em algumas salas de cinema. Semana que vem, eu acho, vai ter em Porto Alegre e no Rio de Janeiro de novo na Universidade Federal Fluminense. Vamos tentar, nesses próximos dias, exibir na cidade de Salvador. Então é isso. A gente está tentando ver com algumas salas de cinema qual a disponibilidade, porque a Larissa não está cobrando para exibir esses filmes, que são filmes caros. Assim, para você exibir um filme desses, você precisa pagar para exibir. Então, ela está disponibilizando alguns desses filmes para essas salas de cinema. Acho que o nosso gesto é este. E eu acho que a recepção é sempre muito boa, porque há uma preocupação muito grande da mostra em sempre trazer um debate depois dos filmes para que eles não fiquem perdidos no espaço. “Ah, o que é isso? Não entendi não sei o quê”. Eu acho que é muito importante ter o debate para que a gente entenda um pouco melhor o que é que está sendo falado ali com o cinema dela. Então, nessas várias sessões dessas várias cidades, sempre tem um debate depois da sessão.
DCO: E nesses debates, o que é que você mais escuta?
CA: Eu acho que é muito mais curiosidade, do que qualquer outra coisa. É muito mais pessoas que não tem muita noção do que é, por exemplo, a história da Nakba, a história do massacre do povo palestino. Então, as pessoas têm muita vontade de conhecer e, em nenhum momento, por exemplo, eu vi um gesto de recusa ou de refutação daquilo que está sendo mostrado nos filmes. Eu sempre escuto mais pessoas perguntando e se interessando e querendo entender o que é que se passa no território. Então, acho que essa curiosidade é muito importante para a gente. Pessoas querendo saber já é, para mim, lucro, né? O problema é aquelas pessoas que acham que sabem.
DCO: Qual sua opinião do uso que figuras como Joe Biden e Benjamin Netanyahu fazem de uma suposta “causa da mulher”?
CA: O uso, por exemplo, das mulheres ou da comunidade queer para falar “que somos mais humanos” e “nós temos direitos humanos dentro dos nossos códigos” de “democracia”, e a “democracia” sendo usada como máquina de guerra, é extremamente perverso, porque é inconcebível você usar a premissa de direitos humanos para desumanizar o outro e legitimar o massacre de um outro que parece ser menos humano. Isso pode ser visto, por exemplo, quando eu falo que o cinema hollywoodiano, um dos projetos do cinema hollywoodiano, é essa desumanização desse outro que não é esse sujeito branco, é isso. Ou quando, por exemplo, Elia Suleiman, que é outro diretor palestino, fala sobre esse projeto simbólico desse cinema que desde sempre coloca o povo árabe como escorpiões e cobras. Um povo composto por vermes, aliás, é abaixo de escorpião e cobra, eles são vistos como vermes. Isso está aí desde o princípio. A gente tem propagandas audiovisuais – o filme de Elia Suleiman é muito preciso nisso – de desenhos animados para criança que vilanizam completamente o povo árabe e colocam ele sempre como os grandes vilões, esses xeiques malévolos e tal. Então, tem um projeto muito grande de desumanização do povo árabe. É uma das desumanizações que o Ocidente cria, né? Eu acho que um dos cartazes mais interessantes das manifestações pró-palestinas nos últimos tempos é um cartaz que diz: “esse novo Nakba desfaz um outro mito, o mito dessa civilização ocidental pró direitos humanos”.
E isso é mitológico. Essa “civilização ocidental” não existe. Essa “civilização ocidental” é bárbara. Então, acho que isso é muito importante de ser pontuado. Então, essas pessoas, esses genocidas, são apenas o reflexo disso daí. Eles são provas contundentes de que essa civilização ocidental jamais pode ser lida como a “civilização democrática”, “pró direitos humanos”. Eles são bárbaros, eles são selvagens e eles desumanizam para criar uma falsa narrativa de humanização de algumas pessoas que podem ser “humanizadas”. Quem são essas pessoas? Pessoas brancas? Resumindo, é isso. Assim, é sempre uma branquitude que é mais humanizada. Então, acho que esse é um projeto perverso, que não é de hoje, é de muito tempo. E tem um texto do Achille Mbembe que, para mim, é fundamental, que se chama Necropolítica. E no texto do Achille Mbembe, em que ele fala de necropolítica, ele fala precisamente nesse texto que a Palestina é a última fronteira da necropolítica e onde a necropolítica é mais ativamente usada, que a necropolítica é essa nova forma de colonização. A Palestina é, digamos assim, o símbolo maior dessa nova forma de colonização no mundo. E eu acho que é muito importante ler esse texto do Mbembe, porque eu acho que ele é muito preciso nessa identificação de como é que opera essa necro política dentro do território palestino.