No último dia 28 de novembro, foi promulgado um projeto de lei vetando a manutenção ou instalação de qualquer tipo de homenagem que exalte pessoas que tenham praticado “atos lesivos aos direitos humanos”, aos “valores democráticos” ou ao “respeito à liberdade religiosa”. Foi feito então uma lista prévia de nomes a serem aplicados esta lei pela vereadora do PSOL Monica Benicio, onde o Padre António Vieira foi colocado por supostamente ser racista. Mesmo sendo considerado um dos maiores nomes da luta contra a escravidão do Brasil Colônia, nos últimos anos vem crescendo uma corrente historiográfica revisionista que tenta colocá-lo como um defensor da escravidão negra.
Além do problema claro de tentar fazer uma perseguição anacrônica a figuras históricas, exaltadas por sua importância na formação de nosso País e não por bobagens moralistas, não se exalta o racismo nestas homenagens, até porque, se colocarmos critérios morais modernos para julgarmos que figuras históricas deveriam ser homenageadas, principalmente através dos critérios morais identitários dos autores desta lista, praticamente não sobraria homenageados mesmo entre figuras do século passado, sendo que homenagens sempre são referências do que a figura daquela pessoa representa e evoca para além dela e não suas características secundárias, muitas vezes pessoais. Há também o problema ignorado pelos histéricos de que o padre foi um ativo agente contra os maus-tratos e a escravidão dos índios, fato escamoteado pelos seus bárbaros detratores.
O padre Vieira, fruto da tradição intelectual católica de sua época, se punha contra qualquer forma de escravidão, publicando em 1633 o sermão XXVII do Rosário Maria Rosa Mística, onde, ao falar sobre os escravos africanos, defende: “estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos?” e “porque a natureza, como Mãe, desde o Rei ao Escravo, a todos fez iguais, a todos livres”, defendendo com firmeza, a igualdade teológica entre os homens, sejam eles negros, ameríndios ou brancos, desmistificando a farsa histórica de que os católicos teriam no passado defendido a inexistência da alma em determinadas raças. Isto fica ainda mais claro no Sermão XX do Rosário Maria Rosa Mística, onde diz: “Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão ou natureza.” e também fala de forma poética: “Lá disse Deus a Samuel que Ele não era como os homens; porque ‘os homens olham para o rosto, e Deus para os corações’: Homo videtea, quae parente, Dominus autem intuetur cor [1Rs 16, 7]. Pois assim como nos olhos de Deus, assim também nos de Sua Mãe, cada um é da cor do seu coração”.
Após ser expulso do Maranhão por sua militância contra a escravidão indígena, António Vieira faz o Sermão da Epifania para se defender para a rainha e a Corte, fazendo um discurso anti-racista de base católica e abordando os negros: “Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois eram brancos e um preto, como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se creem e adoram a Cristo, como os Magos. Notável coisa é que, sendo os Magos reis, e de diferentes cores, nem uma nem outra coisa dissesse o Evangelista! Se todos eram reis, por que não diz que o terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram cristãos, e entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do batismo. Um Etíope, se se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não fica branco; porém na água do Batismo sim, uma coisa e outra: Asperges me hyssopo, et mundabor: ei-lo aí limpo; lavabis me, et super nivem de albabor [Sl 50: 9]: ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão e tão pouca a fé daqueles inimigos dos índios, que, depois de nós os fazermos brancos pelo batismo, eles os querem fazer escravos por negros.”
Os defensores da visão de António Vieira escravocrata e racista evocam, por exemplo, o seu posicionamento sobre a revolta dos Palmares onde ao ser consultado solta o argumento moral contra os revoltosos: “quinta, fortíssima e total, porque sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo, e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se restituírem ao serviço e à obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer”, defendendo a ilegitimidade dos afro-escravos de se rebelarem contra seus senhores, porém ele prossegue dizendo sua solução ideal para o problema: “Só um meio havia eficaz e efetivo para verdadeiramente se reduzirem, que era concedendo-lhe Sua Majestade e todos seus senhores espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naqueles sítios como os outros índios, e gentios livres, e que então os padres fossem seus párocos, e os doutrinassem como aos demais.”, defendendo que a condição destes deveria ser equiparada ao que ele defendia para os ameríndios. Porém, após isso ele pondera que se dessem a liberdade para estes revoltosos inspiraria mais revoltas do tipo, gerando a destruição do Brasil.
Praticamente todas as defesas em prol do padre ser uma racista escravocrata surge de situações onde o padre segue a mesma linha de raciocínio, porém, ao enxergar estas falas de Vieira sob o que ele é, um católico, fica claro o que leva o padre a ter tais posicionamentos: o raciocínio não parte de uma defesa da escravidão, como ficou claro através das várias citações trazidas aqui. Ele condena a escravidão como algo pecaminoso, anti-natural e não vê ela como uma instituição que deve existir em uma sociedade católica, porém prioriza o princípio pela manutenção da ordem e sua tendência contrarrevolucionária. Sim, uma visão extremamente conformista e de princípios terríveis que sempre auxiliarão o opressor, porém, independente de correta ou não, não é uma visão pró-escravidão, como querem fazer crer seus detratores identitários. Apenas tolera-a de forma pragmática para manter princípios maiores. Sim, bastante destoante da nossa moralidade atual, chegando ser de difícil compreensão, mas apesar de valorizar menos a liberdade, não a deixa de valorizá-la e tendo a defesa dela em uma sociedade ideal, desta forma não contendo nenhum valor racista ou filosofia escravocrata, evidenciando o esforço identitário de atacar a história de nosso país tentando destruir nossos heróis a todo custo.