Lucas Mollica Antonucci, militante da luta antimanicomial.
No dia 20 de outubro de 2023, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do ministro José Wellington Barroso de Araújo Dias, publicou a portaria MDS Nº 926. Tal portaria afirma que:
“Estabelece diretrizes em âmbito nacional para fiscalização e monitoramento dos serviços prestados por Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas”.
Os estabelecimentos referidos, são as famigeradas Comunidades Terapêuticas (CT). Na atualidade essas instituições privadas, são financiadas por dinheiro público, porém ao contrário dos dispositivos de saúde mental do SUS, elas não possuem regulamentação para seu funcionamento. Prestam o serviço, que elas mesmas avaliam a necessidade de continuação ou alta do paciente internado, e podem receber do governo conforme o serviço prestado. É um grande cheque em branco, sem qualquer critério técnico, mas têm muito mais.
Essas instituições são frequentemente denunciadas por várias formas de violência contra os pacientes, com episódios graves amplamente registrados. Após muitas denúncias e a militância da luta antimanicomial, ocorreram inspeções dessas instituições no país, com resultados tenebrosos. Os relatórios indicam violações de direito generalizadas, até casos de sequestro e assassinato, basta uma breve pesquisa.
As CT´s são versões modernas dos antigos manicômios, que produziram um massacre na população brasileira. Abrigavam em péssimas condições os pacientes, pelo mínimo de custo possível, e o máximo de lucro.
Se as CT´s são muito mais capilarizadas, diferente dos antigos grandes manicômios, o esquema de lucro continua valendo. o público são pessoas em situação de vulnerabilidade, por vezes com rompimentos de vínculos, ou taxadas como incapazes de decidir, de modo que se aceite socialmente a exclusão.
Ainda assim, entra governo e sai governo, e essa política não muda. Do ponto de vista político, é outra atuação inexplicável do atual governo, porque muitas dessas CT´s pertencem, ou são intimamente ligadas, a bancada da oposição. Não é nem um financiamento indireto, pelo qual os legisladores direitistas se beneficiam com apoios posteriores, em muitos casos, é um financiamento direto mesmo, concedendo mais dinheiro e poder para a própria oposição, à troco de um tratamento violador dos brasileiros, com imposição religiosa, homofobia, e os preconceitos típicos da extrema direita, que o governo “tanto” combate.
Mas vamos à novidade, a portaria 926 do MDS. Segundo consta: “Estabelece diretrizes em âmbito nacional para fiscalização e monitoramento dos serviços prestados por Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas”. Mas na prática, a própria portaria ASSUME deliberadamente, o financiamento da violação de direitos.
Art. 6º As fiscalizações devem priorizar entidades que possuem denúncias ou indícios de irregularidades.
E na sequência vêm como se dará essa fiscalização, com um roteiro, onde se poderá marcar:
C – Conforme
AM – A Melhorar
NC – Não Conforme
NA – Não Aplicável
Marcar com X algumas das questões esperadas numa vistoria de manicômio, cadeia, ou mesmo são perguntas que se poderia fazer para alguém que saiu de um cativeiro:
Fornece alimentação (especificar quantidade de refeições diárias).
A proibição de castigos físicos, psíquicos ou morais.
Não se viola, em nenhuma instância, a correspondência do acolhido, e as ligações telefônicas podem ser realizadas com privacidade.
Não expõe o acolhido à situação de constrangimento ou de vulnerabilidade, como ações em vias públicas de vendas de produtos ou de arrecadação de recursos, ou outras atividades congêneres.
Em caso de evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão comunicados os familiares ou representante legal do acolhido, no prazo máximo de 24h.
Não se utilizam ações como contenção física, psicológica e medicamentosa, bem como quaisquer tipos de isolamento ou restrição que infrinjam a liberdade da pessoa acolhida.
O serviço dispõe de alojamento adequado para o número de vagas de acolhimento oferecidas, separadas por público (adulto masculino/feminino).
Garante a inexistência de espaços restritivos, e mantém os ambientes de uso dos acolhidos livres de trancas, chaves ou grades, admitindo-se apenas o travamento simples.
A própria avaliação, é o reconhecimento da violência, têm que perguntar pra marcar no roteiro, qual a utilidade, o que se quer com esse roteiro? É uma portaria tão apatetada, que é incrível a cara de pau de publicar algo assim. E após esses quesitos, o corporativismo burguês, não deixa faltar a pergunta:
Possui um mecanismo de registro de queixas e sugestões à disposição de cada acolhido e família, onde seja possível expor quaisquer insatisfações e opiniões voltadas à melhoria do serviço.
A falta de noção, de empenho se quer em disfarçar é tanta, que é incluído no roteiro uma pesquisa de satisfação do usuário, com perguntas como:
Se houve situação em que foram contidos fisicamente ou por medicamentos?
É assegurada a privacidade, inclusive no tocante ao uso de vestuário, corte de cabelo e objetos pessoais próprios, observadas as regras sociais de convivência?
E mesmo assim, “As fiscalizações de que tratam esta Portaria poderão ocorrer de modo presencial ou remoto”. O ministério está brincando com o dinheiro público, com a saúde das pessoas, e até com a própria governabilidade.
Esse é o resultado de uma política que opera propositalmente para agradar interesses particulares, de absoluta e cega concessão. Que não dialoga com movimentos sociais, desconsidera a história, a construção prática e teórica do país. Trabalhadores, militantes, pesquisadores, usuários e familiares, todos excluídos da participação política. Em que governo nós estamos?
Essa portaria é uma vergonha, concebida para legitimar essas instituições, transforma a saúde em mercadoria desumanizada. E agora poderão passar a ter certificação de “fiscalizadas”. Que empenho podemos esperar desse ministério?
Essa portaria deve ser revogada imediatamente, todo financiamento público a essas instituições deve ser retirado, e realizada uma fiscalização séria. Esse recurso deve ser realocado no Ministério da Saúde, investido em dispositivos públicos, regulamentados e com atuação cientificamente comprovada.