Nossos companheiros da esquerda, em particular os da pequena burguesia, passaram os quatro anos do mandato de Bolsonaro indignados com as suas declarações racistas, homofóbicas e misóginas, que faziam dele o mais temido dos fascistas. Houve quem o identificasse de tal forma com Satanás que até optasse por não proferir seu nome, chamando-o “inominável” ou atribuindo-lhe a vasta nomenclatura a que faz jus o verdadeiro anjo caído. Diante de Binyamin Netanyahu, porém, nossos companheiros de luta hesitam.
Talvez o “Bibi”, como carinhosamente o chamam os amigos e, vez por outra, a imprensa do sistema, nunca tenha gastado seu precioso tempo com declarações indigestas sobre essas “minorias”. Sabe-se até que a terra prometida se converteu na meca LGBT do Oriente Médio. Bibi pode passar por “amigo dos gays”, mas é ainda mais amigo das bombas e canhões com que pretende destruir os palestinos, pois, como ele mesmo disse, um cessar-fogo seria rendição. Mesmo ante o morticínio perpetrado pelo governo nazifascista de Israel, a esquerda hesita em apoiar a luta palestina, hoje encabeçada pelo Hamas.
É fato que a imprensa burguesa apresenta o Hamas como um grupo terrorista de fanáticos religiosos que estariam em guerra por causa de divergência religiosa. Esse tipo de desinformação, no entanto, não é condenado pelas agências de checagem, pois cultivar a repulsa pelos manifestantes da resistência palestina é parte da propaganda da direita – tanto da extrema como da “civilizada”, ostensivamente juntas nessa batalha.
Os judeus, há muito, investem na autopropaganda; são milhares os livros e filmes que contam no miúdo a tragédia do Holocausto, a ponto de nos parecer, tomada a devida distância histórica, que Hitler – somente ele, na sua loucura – era um ser demoníaco, nascido das trevas. Sim, ele foi capaz de grandes atrocidades, mas, ao que tudo indica, não apenas ele. Sozinho não teria feito tudo o que fez. A observação de como agem os tiranos e de como os outros governos silenciam diante da barbárie, indiretamente (ou diretamente) dando a ela seu aval, nos leva à tentação de reler a história com olhos mais atentos.
Antes, porém, que algum professor de história maluco pense em tirar os judeus de seu eterno lugar de vítimas, aprovou-se a toque de caixa uma lei em São Paulo, proposta por dois deputados (um do Novo e um do Republicanos), que determina como o Holocausto dos judeus deve ser ensinado nas escolas (Lei n° 17.817, de 27 de outubro de 2023): “Artigo 1° – Fica proibido, no âmbito do Sistema Estadual de Educação Básica do Estado de São Paulo, o ensino ou a abordagem disciplinar do Holocausto sob os prismas do negacionismo ou revisionismo histórico”. Em seu Art. 2º, inciso III, o legislador ocupou-se de definir termos: [entende-se por] “III – Holocausto: o genocídio ou assassinato em massa e crime de lesa-humanidade, identificado como uma ação sistemática de extermínio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial, patrocinado pelo Estado Alemão Nazista entre os anos de 1939 e 1945 sob o controle de Adolf Hitler e do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, durante o qual cerca de 6 (seis) milhões de judeus perderam suas vidas”.
Finalmente: “Artigo 3° – O ensino ou a abordagem disciplinar do Holocausto, dentro do currículo educacional, deverá ter por objetivo informar e refletir com os discentes sobre: I – os crimes de lesa-humanidade perpetrados pelo Estado Alemão Nazista durante a Segunda Guerra Mundial contra os judeus e outros grupos também discriminados; II – as razões geopolíticas e sociais que conduziram a este quadro; e III – as ações de resistência a esse regime.
§ 1° – Este ensino deverá munir os alunos com as ferramentas necessárias para a identificação de discursos de ódio em nossa vida contemporânea, de modo a estarem mais preparados para exercer responsavelmente sua cidadania.
§ 2° – Para a consecução do disposto no “caput” e no § 1° é vedada a abordagem do tema do Holocausto sob os prismas do negacionismo ou de qualquer forma de apologia ao nazismo [sic], conforme art. 20 da Lei Federal n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito”.
Os deputados propuseram esse projeto em 2021, durante o governo Bolsonaro, que naturalmente apoiavam. Chama-nos a atenção (daí os grifos nossos) o emprego de certa linguagem típica da esquerda pequeno-burguesa (negacionismo, discurso de ódio). A pergunta que esse tipo de lei provoca é óbvia: o que exatamente pode ser considerado “discurso de ódio” ou “negacionismo” dirigido a judeus no âmbito do desenrolar do conflito hoje vivido na faixa de Gaza? Será permitido aos professores comparar o que o Estado de Israel faz com os palestinos ao que Hitler fez com os judeus? Essa comparação, obviamente, não tem caráter “negacionista”, muito menos de apologia do nazismo, mas é incômoda para a propaganda de Israel, pois tira os judeus do papel fixo de vítimas de perseguição ou antissemitismo. Sim, há judeus (como pode haver e há quaisquer pessoas) capazes de monstruosidades.
Por que uma lei como essa é aprovada justamente agora, quando o líder do Estado de Israel se comporta como algoz do povo palestino? Ingerência no conteúdo das aulas de história já ocorreu no Brasil, mas, não nos esqueçamos, foi durante o regime de exceção, a ditadura militar de 1964. Haverá novas leis para determinar como outros assuntos devem ser tratados nas escolas?
Enquanto isso, a esquerda identitária se preocupa com gordofobia (e não é que a deputada Sâmia Bomfim processou um humorista que a chamou de gorda na internet?) e outras coisas do gênero. A própria imprensa tenta reduzir o noticiário à agenda identitária. O Hamas, segundo o portal UOL, “implementou medidas islâmicas radicais na Faixa de Gaza, incluindo a imposição do uso do véu pelas mulheres e a repressão a outras religiões”. Alguém, em sã consciência, consegue imaginar que as mulheres de Gaza estejam reivindicando a retirada do véu? Essa é a “medida islâmica radical”? Ah, sim, o Hamas é machista e preconceituoso. Será que é gordofóbico também?
Às vezes, fica difícil entender como a esquerda universitária abraçou com tanto entusiasmo o identitarismo, que não passa de um rebaixamento do debate a serviço da direita. Agora, diante de uma questão de fato importante, a petizada identitária não sabe como reagir e tem medo de se posicionar. Parecem crianças totalmente ignorantes do que se passa fora do condomínio onde cresceram, para as quais ação política é “post” no Instagram. E a boiada direitista vai passando…