Dois militantes do Coletivo Juntos, ligado a uma das correntes internas do PSOL, o MES (Movimento Esquerda Socialista), assinaram matéria, intitulada “Uma mulher negra no STF: um diálogo marxista”, na qual procuraram dar uma sustentação “marxista” à defesa da tese em favor de uma mulher negra no STF. O resultado da empreitada é, já adiantamos, absolutamente sofrível.
Os “socialistas” diante do STF
Os articulistas iniciam a sua desventura intelectual reconhecendo o óbvio: “É comum que militantes de esquerda revolucionária apontem que o STF é uma instituição reacionária.” Elencam, inclusive, os motivos que justificariam tal posição: o papel do tribunal no impeachment de Dilma Rousseff, as inúmeras decisões contra os trabalhadores em ações trabalhistas, a vitaliciedade dos cargos e o fato de os ministros não serem eleitos. No entanto ― continuam os autores ― apesar de que tais “críticas são importantes e dignas de serem debatidas”, “não é necessário ser marxista para fazê-las”.
Temos aqui já uma primeira incompreensão a respeito da doutrina marxista. Os jovens membros do PSOL não consideram, por exemplo, que a crítica sobre o caráter não eleito do STF faça parte do patrimônio marxista. Sem dúvida que não marxistas podem também se valer dessa crítica, afinal se trata de uma consideração democrática, e não puramente socialista. Contudo, o que os aprendizes de feiticeiros parecem desconhecer é que, na fase de decadência do capitalismo, a burguesia não já pode desempenhar nenhum papel revolucionário, como desempenhou entre os séculos XV e XIX, e, não obstante, permanecem como não resolvidas as tarefas da “revolução democrática-burguesa” nos países atrasados (revolução agrária, independência nacional, consolidação de um regime verdadeiramente democrático etc.). É por isso que as reivindicações democráticas nesses países devem ser assumidas pela classe operária e seu partido. Cabe, portanto, aos socialistas (nos referimos aos marxistas) defender as demandas democráticas em países como o Brasil. As reivindicações democráticas, pois, integram, como parte fundamental, o programa socialista, marxista. Trata-se do ABC do marxismo e do trotskismo. A “teoria da revolução permanente”, elaborada de maneira mais acabada por Trótski, e o Programa de Transição da IV Internacional explicam no detalhe e deixam clara essa questão. Para os “marxistas” do PSOL, porém, isso não tem importância.
Eles continuam: “A crítica marxista ao STF deve ser mais profunda e constituir-se, sobretudo, como uma crítica ao direito, buscando a essência do fenômeno jurídico, não apenas sua aparência.” Para atingir as profundezas da crítica marxista e alcançar a “essência do fenômeno jurídico”, os militantes do Juntos recorrem a uma das modas presentes na universidade: o jurista soviético Pashukanis. O raciocínio é, de maneira resumida, o seguinte: o STF é parte do Poder Judiciário que, por sua vez, é parte do direito em geral; as relações capitalistas de produção são mediadas pela forma jurídica, cuja expressão mais representativa é o contrato de trabalho, mediação por meio da qual o capitalista explora o trabalhador; a forma jurídica está umbilicalmente ligada ao capitalismo, porque é um reflexo da forma mercadoria; com a abolição do capitalismo pelos trabalhadores, a forma jurídica igualmente será abolida; isso significará o fim do direito e, portanto, o fim do Poder Judiciário e do STF.
Trocando em miúdos: com o fim do capitalismo e a consolidação do comunismo, teremos o fim da forma jurídica, do Estado e, consequentemente, do Poder Judiciário. Trata-se da tese clássica e fundamental dos marxistas.
Mas, como os próprios autores reconhecem, “nada indica que estamos em um período revolucionário, portanto não há qualquer possibilidade de extinção da forma jurídica hoje”. E, então, o que os “marxistas” devem fazer diante do STF hoje? Eles respondem: “Nesse cenário, sabemos da importância de juristas comprometidos com a classe trabalhadora, lutando contra a criminalização dos movimentos sociais e contra o avanço da precarização de direitos sociais e trabalhistas”. E vem a conclusão: “Por isso, defendemos que este governo deve indicar uma ministra negra e comprometida com a defesa da classe trabalhadora para o Supremo, sem com isso depositar todas as nossas esperanças sob essa instituição”.
A “crítica marxista profunda” que prometem tem, na verdade, a profundidade de um poça d’água. O recurso a Pashukanis só tem a função de enganar os incautos. Os pseudomarxistas do MES afirmam que no comunismo não haverá STF, mas enquanto o comunismo não chega, eles defendem o apoia a uma ministra negra para o STF, porque isso significará um avanço. Nesse ponto, sim, seria correto dizer que, no tocante a tais “críticas”, “não é necessário ser marxista para fazê-las”. O recurso a uma suposta “crítica marxista” (Pashukanis) não serve para nada, uma vez que ela só faz referência ao período em que o capitalismo já foi superado, o que permite aos autores abandoná-la logo na sequência, visto que “nada indica que estamos em um período revolucionário”.
Não passa pela cabeça dos militantes do MES defender um programa democrático para o Poder Judiciário. Reivindicações como o fim do STF e das cortes superiores, a eleição e revogabilidade dos mandatos de juízes, a extensão dos casos de júri popular são coisas fora de cogitação porque, segundo eles, tais demandas não seriam propriamente marxistas. Posição marxista seria, isso sim, defender uma mulher negra no STF!!
O esforço para dar ares “marxistas” à tese identitária da mulher negra no STF é um retumbante fracasso. O recurso ao “marxismo” é uma farsa. O abandono do programa democrático e a menção a uma tese que, embora marxista, é apresentada num nível de abstração altamente elevado, revelam que os autores do artigo tentam contrabandear as posições identitárias se valendo do “marxismo”. O artigo dos militantes do Coletivo Juntos é um engodo.
O identitarismo ataca Lula
Quando os autores partem de fato para tentar justificar, de maneira mais concreta, a defesa do apoio a uma mulher negra no STF, tem-se claro o objetivo político por trás da matéria. Referindo-se à “crítica marxista” para tão somente enganar o leitor, o artigo parte para o ataque ao governo Lula.
“(…) a possibilidade de que uma mulher negra ocupe o maior cargo do judiciário é um afronte à branquitude que se mantém na burocracia estatal à base de troca de favores e acordos fechados em jantares”, afirmam os jovens identitários disfarçados de marxistas. “Não à toa, essa possibilidade vem incomodando muita gente, inclusive o próprio presidente Lula, que já declarou que não se utilizará de critérios de gênero ou raça para fazer sua indicação,” completam.
Na sequência, asseveram que “muitos ataques à população negra vem acontecendo sob o governo de Lula” e que mesmo os governos anteriores do PT “já indicavam uma tendência de pouco caso com as pautas antirracistas”.
O artigo é uma peça de propaganda que se vale, como recurso fundamental, dos famosos “amálgamas”, manobra amplamente utilizada pelo stalinismo para combater e aniquilar seus opositores. Os trotskistas foram, sem dúvida, os alvos preferenciais, embora não exclusivos, desse recurso. “Amálgama”, em sentido figurado, é a fusão ou mistura de coisas ou pessoas diversas, heterogêneas, que não guardam equivalência entre si.
Os autores fazem referência ao arcabouço fiscal aprovado recentemente, uma proposta originária do governo Lula, mas que passou por inúmeras alterações no Congresso Nacional até chegar ao seu formato final. Mas também fazem referência à PEC da Anistia, proposta de autoria do senador Carlos Fávero (PSD), mas que conta com o apoio de inúmeras organizações partidárias, tanto à esquerda quanto à direita, em razão das regras draconianas e ditatoriais da Justiça Eleitoral. Para o Juntos, tudo isso seria obra do “mandato de Lula”, porém.
À medida que ganha contornos mais claros, torna-se também mais cristalino que a histeria em torno da “mulher negra” é realmente o prelúdio de uma campanha golpista. Busca, por um lado, colocar um elemento “lavajatista” no STF, um elemento que dance conforme a música tocada pelo imperialismo, e, por outro, iniciar uma ofensiva, pela esquerda, contra o governo Lula, à semelhança do que acontecera com o governo Dilma Rousseff, que teve que lidar com movimentos como o que se organizou contra a usina de Bela Monte e o “Não Vai Ter Copa”, movimentos esses que atuaram como ala esquerda da campanha golpista contra o governo do PT.
O Coletivo Juntos tenta enlamear a doutrina marxista com o fim de defender a campanha imperialista em defesa de uma mulher negra no STF. Tudo o que conseguem, todavia, é revelar sua própria indigência teórica e subserviência aos interesses do capital imperialista.