– Por Victor Assis
Quem deixa o seu país por motivos econômicos também é um exilado político. É isso o que pensa Daniel Mengara, professor de francês e estudos francófonos na Universidade Estadual de Montclair, em Nova Jérsei, Estados Unidos. Ele é o fundador do movimento Bongo Must Go, um grupo de exilados políticos que se opunham ao regime de Ali Bongo Ondimba, do Gabão. Presidente do país centro-africano por 14 anos, Ali Bongo acaba de ser deposto por um golpe militar, executado com sucesso no dia 30 de agosto.
“Decidimos pôr fim ao regime em vigor”, afirmou o coronel Ulrich Manfoumbi Manfoumbi em pronunciamento na televisão. Foi assim que o mundo inteiro tomou ciência do fim da Era Ali Bongo. “As eleições gerais de 26 de agosto de 2023, bem como seus resultados truncados, estão canceladas. As fronteiras estão fechadas até nova ordem. Todas as instituições da República estão dissolvidas”.
Um grupo de militares indo à televisão anunciar a dissolução das instituições do país pode causar calafrios em muitos. Especialmente para os brasileiros, que amarguraram 21 anos de uma ditadura militar que não apenas foi muito repressiva, mas que também fez o país retroceder economicamente de uma maneira inacreditável. No entanto, no Gabão, teria havido um “golpe do bem”, segundo Mengara. “A pergunta que os gaboneses deveriam fazer”, nos disse o professor, “é: vocês não acham que a família Bongo vem liderando um golpe contra o povo gabonês há 56 anos?”.
Os países imperialistas não têm a mesma visão de Daniel Mengara. “A França condena o golpe militar que está em curso no Gabão”, declarou Olivier Véran, porta-voz do governo francês. “Estamos monitorando com muita atenção a evolução da situação no local e reafirmamos nosso desejo de que o resultado da eleição seja respeitado”. Já o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, afirmou que o golpe era “profundamente preocupante”. O norte-americano disse ainda que seu governo continuaria “fazendo todo o possível para apoiar a noção de ideais democráticos expressos pelo povo africano”. O Departamento de Estado norte-americano, por sua vez, emitiu nota destacando que “continuamos fortemente contra as apreensões militares ou as transferências inconstitucionais de poder”.
Apesar de toda a pressão internacional contra os golpes militares recentes na África – dentre os quais se incluem os golpes no Gabão, no Níger, em Mali, em Burquina Fasso e na Guiné -, Daniel Mengara não hesita em defender as forças armadas. “Acho que, no final, tudo se resume a uma coisa: a vontade do povo nunca foi realmente afirmada nesses países. E os militares sentiram que talvez seja hora de dar uma voz ao povo e garantir que o povo possa tomar as rédeas de seu destino”.
Para entender melhor por que Daniel Mengara defende o golpe no Gabão, bem como para entender o que acontece nesse pequeno país da África Central, este Diário decidiu entrevistar o professor exilado nos Estados Unidos. Em um encontro que durou mais de duas horas, Mengara falou com franqueza sobre os mais diversos assuntos: sua opinião sobre o antigo regime, sua impressão sobre o presidente da transição, os motivos que o levaram a se exilar nos Estados Unidos e muito mais. Tudo narrado com uma riqueza de detalhes, incluindo divertidas anedotas que permitirão o leitor imaginar-se vivendo nas terras sem lei de Ali Bongo. Admirador do Brasil – um dos grandes “tigres” mundiais, segundo ele -, Mengara não se eximiu de mencionar nosso País em alguns momentos da entrevista. “O Gabão é, na verdade, muito semelhante ao Brasil em muitos aspectos”.
A entrevista na íntegra já se encontra disponível na edição de 9 de setembro do Diário Causa Operária, a edição comemorativa dos dez dias do golpe no Gabão. Essa foi a primeira entrevista feita por um órgão de imprensa brasileira com um gabonense após o golpe de 30 de agosto e, ao que nos consta, a mais longa entrevista no mundo sobre o assunto.
Muito embora o golpe de 30 de agosto tenha sido condenado pelas autoridades dos países imperialistas, o seu caráter progressista não tardou a vir à tona. Pouco tempo após o anúncio, o esquerdista Jean-Luc Mélenchon afirmou que o presidente deposto, Ali Bongo, era um “fantoche” de Emmanuel Macron. Se mesmo uma figura tão moderada como Mélenchon considerava Bongo um “fantoche”, então certamente o Gabão estava sob um governo profundamente ligado ao regime francês. Sua queda, portanto, seria algo positivo.
Outro dado que confirmou isso foram as manifestações espontâneas após o golpe militar. Milhares de gaboneses saíram às ruas para aplaudir os militares e cantar o hino nacional. Não houve um registro sequer de alguém que tenha protestado contra o golpe. “Foi um golpe sem derramamento de sangue”, nos confessou Daniel Mengara. “Isso significa que nem um único soldado estava pronto para defender Ali Bongo. Nem um único”.
Em um dos discursos mais significativos, um homem, no dia do golpe, falou à população: “nós advertimos aos países sabotadores que irão querer atacar os nossos militares: nós vamos nos fazer soldados porque, em tempo de guerra, precisamos de homens valentes, e nós somos valentes”. No dia 4 de setembro, quando tomou posse o presidente da transição, escolhido pelos militares, esse apoio popular apareceu novamente nas ruas, em uma grande manifestação festiva de boas vindas a Brice Oligui Nguema. “Se você observar o que os gaboneses estão dizendo nas redes sociais”, disse Daniel Mengara, “muitas pessoas estão propondo que o dia 30 de agosto se torne a nova data da independência do Gabão, que devemos celebrar todos os anos”.
O golpe era para valer. No mesmo dia em que o coronel Ulrich Manfoumbi Manfoumbi anunciou a dissolução das instituições, Nguema, que já aparecia como líder da junta militar, concedeu uma entrevista ao jornal francês Le Monde, em que dizia: “Ali Bongo está aposentado. (…) Decidimos virar a página”.
Foi também no dia 30 de agosto que Ali Bongo apareceu pela primeira vez desde o anúncio do coronel Ulrich Manfoumbi Manfoumbi. O presidente gravou um vídeo em que aparecia visivelmente abatido e assustado. “Não sei de nada do que está acontecendo”, disse ele. O presidente deposto também se queixou de estar separado de seus familiares.
O que mais chamou a atenção da fala de Ali Bongo, no entanto, foi o seu pedido para que os seus “amigos” “fizessem barulho”. A mensagem foi entendida, portanto, como um apelo para que os países imperialistas, como a França e os Estados Unidos, interviessem em seu favor. Em nenhum momento Ali Bongo convocou a própria população gabonesa para lhe defender.
“O fato de Ali Bongo ter recorrido aos amigos do Ocidente”, afirmou Daniel Mengara, “revela que, na verdade, no Gabão, ele não tem apoio. (…) Isso é um sinal de que o cara estava lá não porque o povo o queria, mas simplesmente porque, é claro, a França o colocou lá. E enquanto não acontecesse nada que o tirasse de lá, ele seria apenas como um fantoche. Mas ele nunca foi alguém que o povo gabonês apoiasse”.
A lista de motivos pelos quais Ali Bongo era tão odiado é interminável. Nem mesmo a imprensa capitalista conseguiu esconder a podridão do regime de Ali Bongo, que teria um patrimônio estimado em 85 milhões de euros, segundo os jornais franceses. A família do presidente deposto seria ainda dona de 28 propriedades de luxo na França.
O que não apareceu na imprensa, contudo, foi o envolvimento umbilical do governo francês na corrupção de Ali Bongo. Os grandes jornais procuraram dar a entender que o presidente deposto seria apenas um burocrata que teria enriquecido ilicitamente utilizando o aparato do Estado gabonês. O fato, no entanto, é que o grande responsável pela corrupção era a própria França, que permitia que Ali Bongo recebesse algumas migalhas do que o povo gabonês produzia, enquanto saqueava a maior parte das riquezas do país. “Eles estavam dando ao Gabão, pelo que sabemos, 25%. Isso é o que sabemos da produção de petróleo do Gabão por meio de empresas francesas”, nos contou Daniel Mengara. “Depois, descobrimos que talvez a França realmente estava nos dando um pouco mais: eles davam 25% ao país, mas 18% iam para o bolso da família Bongo. Isso significa que estávamos basicamente sob o domínio francês, mas com um presidente gabonês, é isso que éramos”.
Apenas nas 48 primeiras horas do golpe no Gabão, o Comitê de Transição e Restauração das Instituições (CTRI) anunciou que foram apreendidos o equivalente a mais de 500 bilhões de francos gaboneses – cerca de R$4,1 bilhões – em residências de pessoas do governo deposto.
“Um grande problema para a Europa”
As declarações mais significativas dadas por uma autoridade estrangeira no dia do golpe foram as do espanhol Josep Borrell, Alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança. Ele foi além de apenas “condenar o golpe” e disse que o que acontecia no Gabão era “um grande problema para a Europa”. Borrell ainda afirmou que o golpe “aumentará a instabilidade em toda a região”, e que “toda a região – começando pela República Centro-Africana, depois pelo Mali, depois por Burquina Faso, agora pelo Níger, talvez pelo Gabão – está numa situação muito difícil”. O representante da União Europeia concluiu dizendo que as autoridades “terão de refletir profundamente sobre o que se passa lá e como podemos melhorar a nossa política em relação a estes países”.
Pelas palavras do espanhol, fica claro que a preocupação da França e dos Estados Unidos não era com a vida dos gaboneses. Não estavam preocupados com o golpe porque seria um “atentado à democracia”. Estavam preocupados, na verdade, porque ele era parte de uma rebelião generalizada contra a dominação europeia do continente africano.
“Se virarmos a página dos Bongo, damos mais um passo para o fim da Françáfrica”, declarou, ainda no dia 30 de agosto, Thomas Borrel, porta-voz da associação Survie-Ensemble contra a Françáfrica. Isto é, para o representante de uma organização voltada para a luta contra o imperialismo francês na África, a derrubada do regime de Ali Bongo seria mais um passo para o colapso da dominação francesa no continente.
A análise, repetida por muitos outros, era bastante pertinente. Em um curto período de tempo, a França viu Mali, Burquina Fasso, Guiné e Níger se rebelarem contra a sua autoridade. A derrubada de uma dinastia apoiada desde o primeiro momento pelo imperialismo francês, portanto, apenas reforçaria que há uma tendência à rebelião na África francófona.
Ainda no dia 30, o presidente de Camarões, o mais velho presidente em atividade no mundo, Paul Biya, ordenou uma grande reestruturação em suas forças armadas, indicando que o país estaria na iminência de sofrer um golpe. “Eu teria dificuldade em imaginar que os cidadãos camaroneses não estejam sonhando com sua queda agora”, nos confessou Daniel Mengara.
Camarões, que faz fronteira com o Gabão, ficou longe de ser uma exceção. Nos dias seguintes, Ruanda e Uganda também realizaram expurgos em suas forças armadas. Mais recentemente, o presidente da Guiné-Bissau também fez mudanças na segurança presidencial.
O quadro, portanto, é claro: os golpes militares estão se revelando como um verdadeiro “efeito dominó” sobre a dominação imperialista na África. A cada tanto, cai um governo, e essa queda acaba por influenciar os setores nacionalistas de todo o continente a voltar suas armas contra os seus próprios governantes.
Uma independência meramente formal
A dominação da França sobre o Gabão pode ser facilmente explicada por motivos históricos. O país centro-africano se tornou independente em 1960. No entanto, sua emancipação não se deu por meio de uma grande crise com os colonizadores, mas sim por meio de uma concessão.
Foi a própria França que organizou a independência do Gabão, de tal modo que o país foi obrigado a assinar uma série de acordos econômicos humilhantes que, na prática, mantinham o país submisso aos franceses. Até 30 de agosto, não havia nada de importante na economia gabonesa que não fosse completamente controlado pelos franceses.
Nas últimas décadas, o Gabão tem servido como uma grande fonte de madeira, manganês e petróleo para a França, com grande destaque para esse último recurso. Mesmo sendo um país territorialmente muito pequeno, o Gabão está entre os maiores produtores de petróleo da África. O Gabão também já foi um importante produtor de urânio, mas suas minas foram esgotadas pelos colonizadores.
Os acordos humilhantes são garantidos, por um lado, pela corrupção dos governantes gaboneses e, por outro, pela presença militar. Até o golpe militar, havia cerca de 350 soldados franceses atuando no Gabão. Felizmente, em entrevista ao jornal francês Le Figaro, publicada no dia 1º de setembro, o ministro das Forças Armadas da França, Sébastien Lecornu, declarou que a “cooperação militar” entre seu país e o Gabão estava suspensa em virtude do golpe militar. Embora o anúncio possa ser interpretado como uma ameaça de que a França irá sabotar o novo regime, o fato é que se abriu uma oportunidade para a expulsão das tropas francesas do Gabão.
Do ponto de vista da economia, novas perspectivas também foram abertas. Em menos de 24 horas após o golpe, a empresa de mineração Eramat anunciou a suspensão de suas atividades. O fato em si revelou como a dependência de empresas francesas torna o país politicamente refém dos seus dominadores. Em seu discurso de posse como presidente da transição, Brice Oligui Nguema prometeu promover o desenvolvimento do país a partir de bancos locais e do dinheiro recuperado da corrupção da Família Bongo. Essa política poderá levar, pela primeira vez, à formação de uma economia gabonesa de fato.
“Estamos confiantes de que esses golpes estão sinalizando algo novo, especialmente nos países de língua francesa, algo novo que mostra que agora temos o potencial de cortar esse laço colonial de uma vez por todas com a França e talvez, em seguida, começar a imaginar novos tipos de relações”, disse Daniel Mengara.
A caminho da estabilização
Transcorridos dez dias do golpe militar, as coisas se encaminham, ao que parece, para uma estabilização. A total falta de apoio de qualquer setor da população a Ali Bongo praticamente inviabilizou que os países imperialistas organizassem uma reação. Ao mesmo tempo, o caráter relativamente inédito do golpe naquela região – os golpes recentes aconteceram no Sahel, mais ao norte da África -, bem como a ausência de uma grande mobilização abertamente anti-França, têm levado o presidente da transição a adotar uma postura moderada em relação aos antigos colonizadores. Por mais que o conteúdo do golpe seja a luta do povo gabonês contra um regime corrompido pela França, Brice Oligui Nguema tem procurado manter uma relação diplomática com os países imperialistas, de modo a acelerar a estabilização do país.
Independentemente disso, todos os sinais dados pelo governo ao povo do Gabão, até o momento, têm sido bastante positivos. O CTRI tem se reunido diariamente com vários setores da sociedade, como sindicalistas, empresários, políticos e intelectuais. O governo já anunciou a retomada das bolsas de estudo para secundaristas e se comprometeu a encontrar uma solução para o problema da terra, que é uma das coisas que mais aflige a população gabonesa. Desde o dia 2 de setembro, as fronteiras se encontram reabertas.
No dia 5 de setembro, um dia após a posse oficial de Nguema, o CTRI anunciou a soltura dos presos políticos pelo regime de Ali Bongo. Entre eles, o líder sindical Jean-Remy Yara, encarcerado por 18 meses em um processo farsesco. Outra decisão importante foi o anúncio de Raymond Ndong Sima como primeiro-ministro da transição. A decisão, por um lado, mostra a disposição da junta militar em organizar uma transição junto com os civis e, por outro, comprova o rompimento com o regime anterior, uma vez que Raymond Ndong Sima é considerado um “opositor virulento” de Ali Bongo.
A situação parece tão consolidada que o CTRI decidiu libertar Ali Bongo. “Considerando o seu estado de saúde, o antigo presidente da República Ali Bongo Ondimba tem liberdade de movimento. Pode, se assim o desejar, deslocar-se para o estrangeiro de forma a realizar exames médicos”, disse, no dia 7 de setembro, em anúncio na televisão, o coronel Ulrich Manfoumbi Manfoumbi.
Em um dos atos mais simbólicos do novo governo, Brice Oligui Nguema se reuniu com a presidente do Tribunal Constitucional, Marie-Madeleine Mborantsuo, e anunciou a sua aposentadoria. Odiada pelo povo, Marie-Madeleine Mborantsuo foi colocada na presidência da Corte em 1991. Deveria permanecer, no máximo, dez anos, mas ficou no cargo até o dia 30 de agosto.
Marie-Madeleine Mborantsuo era chamada de “Torre de Pisa” pelos gaboneses, pois ela sempre estaria “inclinada para o poder”. Quando foi nomeada presidente da Corte, ela era amante de Omar Bongo, pai de Ali Bongo e mais longevo presidente da história do Gabão. Sua atuação nas últimas décadas foi decisiva para garantir que o governo dos Bongo saísse impune de seus crimes e vencesse todas as eleições.
A queda de Marie-Madeleine Mborantsuo pode muito bem ser considerada o último prego que faltava no caixão da dinastia dos Bongo.