O caderno Ilustríssima, do jornal golpista Folha de S. Paulo trouxe um breve perfil de Antônio Bispo, apresentado como pensador quilombola (também conhecido como “Nêgo Bispo”), onde este proclama sua luta, não contra o latifúndio que se mobiliza para roubar terras de todos os povos camponeses, mas contra o colonialismo, batalha que se dá através daquela que promete ser a nova sensação dos meios universitários: a “contracolonialidade”.
Diz Bispo:
“Se o colonialismo continua e eu vou desmanchar o colonialismo, eu vou morrer cansado: eles fazendo, eu desmanchando, eles fazendo, eu desmanchando. É isso que os decolonialistas estão fazendo. Eles estão desmanchando, os caras continuam fazendo. Nós, contracolonialistas, que temos uma trajetória —os quilombos, as aldeias, as comunidades tradicionais— queremos bloquear o colonialismo e estabelecer uma fronteira. ‘Até aqui, vocês vieram, parem, não venham mais. Para lá nós não vamos, para cá vocês não vêm’. Isso é contracolonizar. Você para o sistema. Não precisa matar os colonialistas, mas precisa adestrar e curar essas pessoas da cosmofobia porque, curados da cosmofobia, eles vão ser menos violentos, eles vão ter menos medo e dá para se conviver.” (“Estado e partidos são colonialistas, diz quilombola Antônio Bispo”, Eduardo Sombini, 19/8/2023). Embolada por uma retórica que simula uma luta contra uma opressão, a política defendida por Bispo e propagandeada pela Folha é muito reacionária.
Recuperando a exótica figura do “bom selvagem” que tanto fez sucesso entre os iluministas do século XVIII, Bispo cerca os povos que vivem submetidos à miséria e ao atraso do meio rural com uma aura de misticismo, o que é útil para romantizar a pobreza destes povos, nomeadamente os quilombolas, mas também os índios e demais grupos que “sofrem tentativas de colonização”(idem). Ao atribuir uma propriedade mística ao modo de vida materialmente baseado na pobreza extrema em que tais povos vivem, o que Bispo faz, na prática, é criar uma desculpa para as condições de vida bárbara dessas populações, para que continuem vivendo completamente alheias ao bem-estar produzido pelo progresso, regojizem-se com isso e possam continuar sendo expropriadas com a máxima brutalidade.
Naturalmente, ninguém civilizado poderia propor que índios, quilombolas e demais povos camponeses sejam forçados a abandonar suas crenças, e terras, para viver em grandes cidades, completamente alijados de suas tradições. É um erro, porém, ir ao outro extremo, como fazem os identitários da estirpe de Bispo e da Folha, e justificar a miséria de populações inteiras através de considerações de cunho religioso e místico.
Da mesma forma, creditar a uma “cosmofobia” (seja lá o que for isso concretamente) a indiscutível superioridade do modo de vida industrial sobre as formas de organização social mais atrasadas, longe de ser um exercício de senso crítico, é uma esquizofrenia. Foi a sociedade industrial que os reacionários defensores da superstição e do misticismo criticam, finalmente, que criou condições de produção em uma escala jamais sonhada pelo homem antigo, proporcionando a integração completa do mundo e de seus mais variados povos, nas mais longínquas terras.
Somente alguém muito perturbado do próprio juízo questionaria o progresso cultural advindo desta revolução que se operou, responsável por elevar o controle humano sobre a natureza, elevando também a uma melhora inimaginável das condições de vida do homem no campo da saúde, da educação, do transporte, da produção artística e de todas as necessidades humanas. Isso é facilmente observado no meio social quando se percebe que mesmo os povos atrasados dos rincões rurais demandam instalações médicas e hospitalares, e outras como rede energética, telefônica, sanitária, moradias, escolas, transporte e uma infinidade de outros itens básicos da vida moderna, mas impensáveis no mundo pré-industrial.
Em meio à crise de superprodução do capitalismo, a burguesia se viu sem outra alternativa a não ser brecar o progresso, ainda que eventuais desenvolvimentos no campo da técnica se produzam. A urbanização e o desenvolvimento industrial, contudo, precisaram ser interrompidos, razão pela qual o racionalismo científico teve, necessariamente, que se tornar um fenômeno negativo, assim como os sinais mais eloquentes da superioridade das nações desenvolvidas sobre as atrasadas, tais como o acesso aos bens de consumo, a cultura, as cidades, as fábricas e etc.
Impossibilitados de colocar essa questão às claras por razões políticas óbvias, a burguesia passou a impulsionar ideias sem pé, nem cabeça, como a de que o problema dos povos mais explorados das nações atrasadas não era a expropriação realizada hoje pelo imperialismo, mas a continuação do colonialismo. Colocado nesses termos, tal formulação permite aos brasileiros oprimidos de hoje, por exemplo, verem em Portugal a raiz de suas desgraças atuais e não nos Estados Unidos, a principal potência imperialista do planeta, mais diretamente responsável pela opressão de toda a América Latina desde fins do século XIX. É próprio do método identitário fugir dos problemas atuais e buscar em etapas históricas superadas (como o colonialismo para a América Latina) a razão dos problemas de hoje.
Se as riquezas, o bem-estar e os confortos produzidos pelo progresso não são igualitariamente usufruídos, temos então um problema decorrente da falta de progresso em um dos campos da cultura humana: a política. E é preciso clareza de que não é a volta à Idade Média que solucionará essa questão, mas o avanço ao socialismo. O retrocesso histórico pode até interessar aos capitalistas aos quais Bispo serve com suas superstições, entre eles os do Grupo Folha, os mais diretamente interessados em impedir o progresso e difundir o misticismo medieval. Não conseguir, entretanto, porque a marcha da história é implacável. Felizmente.