“Primeiro, a justiça. Depois, a pacificação”, artigo assinado por Robson Sávio Reis Souza publicado no Brasil 247, neste 9 de agosto, é mais uma defesa abstrata da democracia e, consequentemente, do Estado.
Um dos principais problemas da esquerda é não compreender a natureza do Estado, que não está aí para promovera a democracia ou justiça social, mas para garantir a ditadura de uma classe sobre outra. No nosso caso, como vivemos sob o capitalismo, sua função é proteger os direitos da burguesia e reprimir a classe trabalhadora.
Quaisquer concessões em gastos sociais, ou exercício da justiça, serão fruto da pressão que as classes oprimidas puderem fazer contra o sistema que protege as classes dominantes. É um problema de força, como no jogo do cabo de guerra, onde, um dos lados detém o controle dos aparatos de repressão estatais.
Portanto, trata-se de uma abstração dizer que “A democracia é um sistema político que busca, entre outros objetivos, garantir os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como a participação e a representatividade de todos na tomada de decisões de interesse coletivo. E, para além desses objetivos liberais, a democracia deveria ser o regime político e institucional que garante a igualdade, não somente formal, mas real, de direitos”.
A democracia, como descrita acima, é uma conveniência em uma sociedade divida em classes. A burguesia vai adotar o modelo acima em períodos de calmaria. Quando houver muita tensão ou polarização social, a dominação burguesa assumirá a feição do fascismo.
Civilização x barbárie
Outro equívoco comum é a crença de que a Constituição de 1988 seja realmente “cidadã”, conforme vemos no trecho que diz que “Desde o golpe de 2016, caracterizado por uma coalizão de atores do sistema de justiça, políticos conservadores e reacionários, grupos midiáticos, militares e membros de segmentos das elites nacionais, o Brasil passou a conviver com um ataque frontal ao pacto sociopolítico consolidado na Constituição Federal de 1988”. – grifo nosso.
O que importa no trecho acima é que existe uma coalizão de setores reacionários na sociedade que deram o golpe em 2016, acrescentando que elas continuam em plena atividade, e controlam o Estado e suas principais instituições. A Constituição, com todos os seus limites, não é respeitada pelo Judiciário, que além de interpretar e aplicar as leis conforme suas necessidades, usurpou as atribuições do Legislativo e passou a também legislar, um flagrante ataque a qualquer coisa que minimamente se poderia chamar de democracia.
Na sequência do texto, o autor trata do fascismo que se evidenciou a partir do Golpe de 2016. Vejamos: “Inicialmente, no governo Temer, mas notadamente no governo Bolsonaro, o fascismo oculto em vários segmentos sociais emergiu sem pudores e atravessamos um quadriênio de múltiplas violências (e a naturalização dessas violências) institucionalizadas (…)”.
Na sequência do parágrafo citado, encontramos um defeito comum da análise econômica da esquerda, atribuindo a Michel Temer e Jair Bolsonaro o momento mais agudo dos ataques neoliberais à economia brasileira, como a seguir:
“Não esqueçamos que o bolsonarismo é a face visível do ultraliberalismo econômico, encarnado na figura de Paulo Guedes (o “Chicago-boy” protegido pela mídia empresarial e seus financiadores), associado ao autoritarismo político, militarizado, e em estreita conexão com o reacionarismo fundamentalista religioso de base cristã”. – grifo nosso.
A fase mais importante da destruição da economia brasileira se deu no período FHC (Fernando Henrique Cardoso), quando um famoso sociólogo, professor da principal universidade brasileira, durante dois mandatos, privatizou tudo o que pôde e entregou para o grande capital internacional. A indústria brasileira foi praticamente dizimada. Setores importantíssimos, como a telefonia, foram para a mão de estrangeiros.
A redução da indústria 30% foi feita sem a necessidade de cachorros loucos como Paulo Guedes ou Jair Bolsonaro. Tudo isso foi feito dentro da “maior civilidade” e se obedecendo à etiqueta social. Até hoje, FHC é recebido com tapete vermelho e tratado como grande intelectual (que nunca foi).
O fascismo
É parcialmente verdade que “a violência contra a democracia durante o governo Bolsonaro e seus cúmplices e apoiadores redundou em várias tentativas de golpes de Estado, ameaças a eleições livres e justas, repressão aos movimentos sociais, restrições aos direitos fundamentais e a mais grosseira manipulação sociopolítica”. Bolsonaro não foi eleito justamente com o apoio dos tais setores ‘conservadores e reacionários’? A burguesia e o imperialismo já tinham dado o golpe em 2016, a Bolsonaro cumpria a tarefa de consolidar o golpe. Não havia a necessidade de dar um golpe dentro do golpe, e seu governo foi quase totalmente controlado pela burguesia.
O uso da força e do fascismo é um recurso que os burgueses não se incomodam em lançar mão. A utilização “das redes sociais como instrumento de difusão de uma guerra cultural marcada pelos discursos de ódio, manipulação religiosa baseada numa moral reacionária e todo o tipo de notícias falsas”, é outro mito que se criou para desviar a atenção dos verdadeiros manipuladores, dos produtores de discurso de ódio e notícias falsas: a grande imprensa.
A grande imprensa é fascista, basta ver sua atuação especialmente durante o Estado Novo e nos golpes de 1964 e 2016. Além do apoio aos golpes, sabe-se da participação da Folha de São Paulo na repressão da Ditadura Militar.
O governo Lula
Com a vitória de Lula nas últimas eleições, parte da esquerda se esqueceu do caráter burguês da nossa sociedade, confunde governo com Estado, e passou a propagandear que se pode reformá-lo e que é preciso defendê-lo.
A “defesa da democracia” para a esquerda pequeno-burguesa se tornou sinônimo de cadeia. Para tudo se pede prisão e o aumento de penas. O ministro da Justiça, Flávio Dino, lançou um pacote de “segurança pública” que faria inveja até ao fascista Sérgio Moro. Enaltece a polícia e desarma a população. O resultado, não poderia ser outro, é a impunidade com a qual o Estado continua chacinando a população indefesa. O que a polícia faz, com o auxílio da grande imprensa, não se chama fascismo?
Toda hora lemos que “a responsabilização, julgamento e punição de conspiradores da democracia não é uma tarefa somente do governo Lula e da sociedade civil progressista. Outras instituições democráticas, como o sistema judiciário, desempenham um papel fundamental nesse processo, assegurando que haja a devida responsabilização e punição para aqueles que atentaram contra os princípios democráticos”.
Quais seriam as “instituições democráticas”? O Judiciário é completamente ditatorial, persegue indivíduos, promove a censura, usurpa atribuições de outros poderes da República. Não existe nada mais antidemocrático no Brasil do que essa instituição que, não podemos nunca esquecer, foi crucial para o golpe contra Dilma Rousseff, prisão de Lula e eleição de Bolsonaro.
Quem controla o Estado?
Soa quase como ingenuidade quando lemos que “é importante ressaltar que a justiça não deve ser utilizada como um meio para perpetuar ou agravar a violência. É fundamental garantir que os processos judiciais sejam conduzidos de maneira imparcial, respeitando os direitos humanos e garantindo o devido processo legal para todas as partes envolvidas”. Quem vai dar tais garantias, o Supremo Tribunal Federal, que não liga para a Constituição?
Talvez estejamos diante de uma nova religião, pois isso de que “após a busca da verdade e a execução da justiça, em primeiro lugar, a pacificação se torna um objetivo importante, mas derivado nesse processo de reconstrução das bases democráticas do país. [e que] Isso envolve a criação de um ambiente político e social no qual a confiança e o diálogo possam ser restaurados, permitindo a reconstrução e o fortalecimento das instituições democráticas”.
A quem interessa a “pacificação”? Pacificação de quê? A burguesia continua seu feroz ataque contra a população, isso vai desde a política de juros do Banco Central, que drena a economia para os bolsos dos banqueiros, até a ação assassina dos aparatos de repressão do Estado.
A classe trabalhadora precisa se rebelar contra toda a opressão que vem sofrendo. A pacificação abstrata, acadêmica, é bonita no papel. Na prática, o que se vê é o terror contra a população.
O dever da classe trabalhadora é acirrar a polarização contra a burguesia, se impor, só assim conseguirá algum tipo de paz e democracia. Se apostarmos no fortalecimento do Estado e suas instituições, especialmente o Judiciário, apenas iremos fortalecer a ditadura que já se abate sobre nossas cabeças.