Em coluna publicada no portal Brasil 247, o músico Ricardo Nêggo Tom descobre que “engana-se um preto, ao imaginar, por exemplo, que pelo fato de seu parente, vizinho, colega de trabalho ou de universidade, ou qualquer outra pessoa próxima do seu convívio, pertencerem à sua mesma raiz étnica, que eles lhes serão confiáveis e aliados.” (“No racismo estrutural, nem todo preto é seu aliado e nem todo branco é seu inimigo”, 8/8/2023). O título parece indicar uma política acertada, afinal, não é a cor da pele que definirá o papel político de alguém, mas aquilo que a pessoa efetivamente faz. Nêggo Tom, no entanto, mete os pés pelas mãos e atribui como causador do fenômeno o extravagante conceito de “branquitude”, definido por ele como “quase que um estado de espírito manifestado por aqueles que se julgam humanamente superiores aos pobres mortais racializados” (idem).
A Polícia Militar, máquina de matar negros e pobres em escala industrial, incorpora – segundo o colunista – “o espírito da branquitude sistêmica” (“quase um estado de espírito”, não esqueçamos) ao executar pobres com a máxima crueldade, mesmo que a maioria dos homens da tropa sejam negros. A razão para isso, entretanto, não demanda grandes exercícios filosóficos.
O próprio Tom ensaia chegar ao ponto da questão, quando trata (ainda que de maneira abstrata) dos privilégios de que dispunham os capitães do mato, durante o período do sistema escravagista. “A Polícia Militar”, diz o colunista de Brasil 247, “é um exemplo claro dessa alienação por meio de uma suposta superioridade. A maioria esmagadora que compõe a base operacional da instituição [PM] é preta e periférica. No entanto, é por meio das armas desses agentes racializados pela estrutura, que o Estado brasileiro segue promovendo o genocídio da população preta e periférica.”
Está muito bem dito, até prosseguir, sentenciando que os negros que compõe a força de repressão aterrorizam a população “acreditando que incorporam o espírito da branquitude sistêmica através do comportamento”.
Enquanto o autor busca sua resposta apelando para uma confusa psicologia de massas, o marxista olha o edital do concurso público da PM aberto neste ano de 2023 e descobre que antes mesmo de começar as chacinas, ainda na etapa de treinamento, um PM tem vencimentos superiores a R$4 mil. Por outro lado, segundo a pesquisa Pnad Contínua, do IBGE, 90% dos trabalhadores brasileiros ganham menos de R$3.422, 15,5% a menos e não custa lembrar, daqueles que ainda estão sendo treinados. Naturalmente, o cálculo oficial despreza valores extra-oficiais recebidos por policiais sobre os quais, só se pode especular.
O desgarramento dos PMs em relação aos pares (“pretos e periféricos”, como disse o autor), portanto, pode até envolver algum tipo de mentalidade extravagante ou considerações ideológicas das mais estranhas e diversas, mas no fim, obedece a um fato da vida material. Recebem salários que os colocam efetivamente acima de 90% da população, a própria definição de privilégio. Na medida em que são privilegiados, aceitam de bom grado a tarefa suja que a burguesia lhes paga para desempenharem.
Segundo o IBGE, 56,1% da população brasileira se declara negra ou parda em 2021, enquanto 43% se declara branca. Sem entrar no mérito da questão da identificação racial, um contingente populacional de 90% até pode ter uma predominância negra, mas necessariamente terá um percentual muito expressivo de brancos para que este segundo grupo seja desprezado.
Tomado solitariamente, esse fenômeno já invalidaria a confusa tese da “branquitude”, mas a estatística (ou seja, o mundo real) vai além, evidenciando o que os identitários se esforçam para negar, o fato de que brancos oprimidos e negros oprimidos têm um inimigo em comum: a burguesia. É o controle do sistema econômico que mantém 90% da população brasileira (negros ou brancos) ganhando menos da metade do salário mínimo vital à sobrevivência dos trabalhadores (que segundo levantamento da Corrente Nacional Sindical do Partido da Causa Operária, deveria ser de R$7,5 mil). É também o controle do sistema político e do Estado que organiza as polícias de conjunto e toda a política de chacinas contra a população pobre e negra dos bairros operários.
É contra eles, a burguesia, que deve ser dirigida nossa energia revolucionária, de modo a cortar o mal pela raiz. Sem isso, falar em “branquitude”, “racializados” (seja lá o que for isso) e coisas do gênero serve apenas para espalhar a cizânia nas fileiras daqueles que têm a força necessária para realizar essa tarefa: a classe trabalhadora.