Artigo de Valerio Arcary, “Governo Lula, o que está em disputa”, publicado no sítio Esquerda Online nessa quinta-feira (22), apenas reforça erros que parte da esquerda vem cometendo. A tese central do artigo, segundo ele próprio diz, põe o ‘fascismo como nosso principal inimigo’. Dela poderíamos derivar que 1) o governo Lula, apesar de tudo, deve ser apoiado “porque cumpre um papel progressivo” e, 2) Arcary não entende que o fascismo é uma expressão do imperialismo, e ao propor a luta contra uma de suas faces, põe de lado a luta o inimigo verdadeiro da classe trabalhadora.
Ainda que Arcary caracterize o governo Lula como sendo de colaboração de classes, a tese de que ‘o grande inimigo é o fascismo’ serviu de desculpa para que seu partido, PSOL, tentasse bloquear a candidatura Lula e formasse uma frente ampla com a direita e golpistas de carteirinha carinhosamente apelidados de “campo progressista”.
Guilherme Boulos, deputado federal do PSOL, foi um dos maiores promotores da necessidade de se formar essa frente ampla em nome de se derrotar o “grande diabo fascista” encarnado em Jair Bolsonaro. Em seu socorro, Boulos chegou a dar como exemplo a campanha Diretas, Já!, omitindo apenas que a esquerda foi miseravelmente traída nesse processo.
A tentativa de se colocar a esquerda a serviço de um candidato da ‘terceira via’, mascarado de ‘frente ampla, fracassou. A própria terceira via fracassou, pois a polarização social impediu essa manobra da burguesia.
O artigo está dividido em cinco tópicos. No primeiro, Arcary tenta caracterizar o que estaria em disputa no governo Lula: a pressão pela direita da base do governo, fruto da “indicação de Alckmin, depois com a integração do MDB de Simone Tebet, o PSD de Kassab e até uma fração do União Brasil de Alcolumbre e, finalmente, com setores do PP de Lira e dos Republicanos da Igreja Universal”; contraposta a uma pressão à esquerda por partidos que integram o governo “muito moderados”, somando-se ainda que “o governo Lula é um governo de colaboração de classes”.
No segundo tópico, temos que o governo apesar de sua popularidade “representa um pacto. Tem limites muito evidentes. O principal deles é a preservação da estratégia de contenção da dívida pública. Ou seja, não haverá ruptura com o tripé macroeconômico de metas de inflação, câmbio flutuante e superávit fiscal. Isso não está em disputa”.
A questão das metas fiscais foram traçadas já no golpe de 2016 com a aprovação do teto de gastos. Se existe um pacto, nele o governo está completamente emparedado por um Congresso hostil no qual não tem maioria. E ‘contenção da dívida pública’ esteve, sim, “em disputa”. O governo tentou se livrar das amarras econômicas e conseguiu aprovar um mísero ‘arcabouço fiscal’ que tenta pelo menos, a se verificar, uma pequena abertura no teto de gastos.
No item 3, temos uma certa defesa do governo Lula sobre a questão da invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, sobre a questão do garimpo na reserva Ianomâmi, e diz ainda que “o governo potencializou o Bolsa- Família, relançou o Minha Casa Minha Vida e o Mais Médicos, restaurou o programa de vacinação pública, reajustou a tabela do Imposto de Renda e para as bolsas dos pesquisadores universitários, deu um alívio para as perdas salariais do funcionalismo federal, reposicionou o Brasil, internacionalmente, ao contrariar, mesmo que de forma parcial, os interesses dos EUA na guerra da Ucrânia”.
O quarto e quinto tópico tratam da extrema-direita e do caráter do governo: “o maior desafio é a derrota da extrema-direita, em especial, a ala neofascista. Nada é mais prioritário, nada, absolutamente nada, se é que queremos aprender algo dos últimos anos”.
Um dos erros de determinados setores da esquerda é confundir Bolsonaro com o bolsonarismo, por isso lemos que “a luta passa pela condenação de Bolsonaro. A inelegibilidade do capitão já será uma vitória enorme, mas insuficiente. Bolsonaro deveria ser condenado à prisão”. O uso de uma instituição burguesa, o Judiciário, não vai solucionar as contradições sociais. A eventual prisão de Bolsonaro não acabará com o bolsonarismo e poderá até surtir o efeito contrário: seu fortalecimento, como se tem verificado nos Estados Unidos com Donald Trump.
Lula foi preso e poderia vencer ainda no primeiro turno mesmo encarcerado, não tivessem cassado ilegalmente seus direitos políticos. Após quase dois anos na prisão, Lula voltou e se elegeu. Seria a hora de esses setores da esquerda ‘aprenderem algo dos últimos anos’.
A esquerda pequeno-burguesa se afastou da classe trabalhadora e precisa se apoiar no Estado. Em vez de ampliar a base social para enfrentar a extrema-direita, prega que “a luta contra os fascistas exige investigar e condenar os golpistas”.
A promessa de oposição
Um dos aspectos do artigo, apesar de colocar a luta contra o fascismo como prioritária, é deixar uma porta aberta para a luta contra o governo Lula, como se nota nesta frase: “o papel da esquerda anticapitalista é ajudar a radicalizar a luta antifascista até o fim”. Por que grifamos esse trecho? Porque mais adiante teremos o seguinte: “o governo Lula não é um ponto de apoio para a luta pelo socialismo. Lula não é Fidel Castro. O governo Lula é burguês. Ou seja, não tem antagonismo com o capitalismo”; “Não haverá, tampouco, ruptura com os “ditames” neoliberais”, “é um governo burguês ‘anormal’”.
Talvez Valerio Arcary não se lembre, mas também não havia contradição entre Fidel Castro e o capitalismo. A Revolução Cubana foi uma revolução democrática. A ação das massas é que a levou, dois anos depois, ao socialismo.
No começo do tópico 5, quando Arcary diz que o “bom marxismo” não reduz tudo à luta de classes, querendo dizer com isso que as divergências do governo Lula com a burguesia são de outra natureza, faz uso de um artifício, dá uma volta, para afirmar o mesmo que afirma ainda hoje seu antigo partido, o PSTU, de que os governos petistas e o imperialismo são, tirando algumas particularidades, uma única coisa.
A esquerda golpista, a que se aliou ao imperialismo para derrubar Dilma Rousseff e colocar Michel Temer no poder, não diferenciava os governos petistas de um governo burguês, não essencialmente.
É um erro grave não enxergar a luta de classes, os antagonismos, entre um governo de cunho nacionalista de um país atrasado com o imperialismo. Se quisermos ir mais a fundo, temos de reconhecer que existe luta de classes até na oposição entre Trump e Biden, onde se opõem a grande burguesia nacional americana e o grande capital financeiro.
A posição de Arcary difere pouco da do PSTU, seria apenas um problema ‘tático’, por isso diz que “Aqueles na esquerda radical que ensaiam se posicionar como oposição, abraçando uma tática de denúncia sistemática, estariam flertando com uma linha Fora Todos (…) Já vimos esse perigo antes. Podemos ser melhores e aprender com erros do passado. Isso exige firmeza de princípios e flexibilidade tática. E muita paciência”.
Já existem manifestações vindas de outros partidos de partidos da esquerda filo-imperialista, como o PCB e o PSTU, e o golpismo da esquerda, no momento, pode ser dividido entre os mais afoitos e os com paciência.