A Cleópatra de pele escura, e o debate que ocorreu a partir da série da Netflix, mostra bem os limites do identitarismo. Provavelmente para conseguir engajamento, criando uma polêmica desnecessária, a série acabou escalando uma atriz negra para o papel principal. Contrariando as vertentes históricas oficiais que demonstravam que Cleópatra era Macedônica – portanto branca – os produtores insistiram na escolha. Não deram importância ao fato da cultura egípcia ser desconsiderada e não se preocuparam que fatos históricos fossem aviltados e torturados; o que vale é lacrar, mostrar-se “moderninho” e supostamente defender minorias.
Creio que poucas coisas são mais prejudiciais à causa dos negros e à luta contra o racismo do que fomentar histórias como esta. O mundo árabe está justamente indignado pela falsidade histórica do documentário, e a culpa disso acabou recaindo sobre a agenda identitária.
O que me impressiona é que bastam cinco minutos de leitura de mitologia africana para maravilhar-se com suas histórias, lendas e mitos. Cabe então a pergunta: por que é necessário burlar a história egípcia para levar adiante a causa dos negros? Por que não levar às telas as incríveis narrativas épicas da África sub-sahariana?
E digo mais: “Black Panther” fez um gigantesco sucesso de público e crítica com atores negros e a partir da fantasia de uma sociedade utópica racial, a terra de Wakanda. Assim, não se trata de preconceito contra a desenvoltura de atores negros ou com histórias com temática negra, mas de evitar que esse tipo de lacração venha a impedir a real emancipação das comunidades negras pela violência produzida contra os fatos e contra outras culturas.
E antes que critiquem, quero lembrar que há 40 anos eu mesmo já dizia: “Jesus nunca foi branco; ele era um Palestino de pele escura“. Se é importante afirmar um “Jesus negão”, porque não seria justo aceitar uma Cleópatra grega?
Destruir – ou perverter – obras clássicas por motivos ideológicos não tem perdão. E não são poucos os que já estão em desacordo com este tipo de revisionismo; no mundo inteiro vozes estão se levantando contra este ataque identitário, que deseja modificar livros como a “Cabana do Pai Thomas” e até obras clássicas como “E o Vento Levou”. Isso é inaceitável e ofensivo à cultura. Atores como Tom Hanks se manifestaram contra este abuso há poucos dias, e leis estão sendo criadas para proteger que obras clássicas não tenham seu conteúdo alterado. Mudar estes textos sem considerar sua relevância no contexto em que foram criados é um ato criminoso.
É impossível estar de acordo com essa perspectiva, que mente e que falseia a história. Quando vejo as justificativas de quem apoia as “maquiagens” feitas, percebo que elas são como aquelas do livro “1984”. Nesta obra George Orwell descreve o Ministério da Verdade, que modificava os documentos, livros e a própria história em decorrência das contingências políticas vicariantes. Da mesma forma, estuprar “O Guarani” para dar conta de interesses de hoje é um crime “lesa humanidade”, em especial se estas “novas versões” servem às questões identitárias.
Destruir a história de Cleópatra ou o drama de “O Guarani” por conta de pressões e padrões politicamente corretos não vai ajudar em absolutamente nada na proteção de negros e indígenas, mas vai municiar os detratores desses movimentos como já se observa. A “Cleópatra Black” e “O Guarani” já são pautas de ataque na direita mais obtusa e reacionária.