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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Liberdade de expressão

A verdade surge da liberdade, não da censura

Criminalizar opinião é dar ao Estado burguês plenos poderes para exercer o arbítrio

Em tempos de PL 2630 ou PL das Fake News, quando a imprensa dita “profissional” acusa os outros de mentir nas redes sociais e pede punição às plataformas que deixarem passar as “manifestações de ódio”, um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo, publica uma falsa denúncia de existência de núcleo nazista em uma pequena cidade de Santa Catarina.

Em artigo baseado em boatos e nas próprias impressões, a colunista Giovana Madalosso relata uma viagem que fez a Santa Catarina com o companheiro e dois enteados, durante a qual notou a inscrição “Heil” no telhado de uma casa. Sua imaginação, associada ao fato de Bolsonaro ter obtido vitória eleitoral no estado (69% dos votos) na última eleição, viu no sobrenome de Valmor Heil, proprietário local de casas de aluguel, uma alusão à saudação nazista “Heil, Hitler”.

Em estilo pseudoliterário, ela introduz assim o seu relato:

No começo deste mês, eu, meu companheiro e nossos filhos viajamos para uma cidade de Santa Catarina. Um amigo, que me deu dicas do que fazer na região, já havia me contado sobre a existência de uma casa possivelmente exibindo uma saudação nazista, mas eu não botei muita fé. Quer dizer, conhecendo bem o estado, e sabendo que 69% de seu eleitorado votou em um fascista, até botei, mas achei que era coisa discreta, furtiva. Tanto que, não tendo o endereço, nem esperava encontrar a tal residência, embora meu espírito de jornalista já estivesse atento desde o momento em que saímos da estrada repleta de araucárias e entramos na avenida de casinhas bucólicas entremeadas por vitrines com casacos e cachecóis.

Foi no segundo dia, que o telhado despontou ao acaso, rompendo a serenidade do céu azul. Lá estava a palavra HEIL, escrita com telhas, grande e destacada o bastante para ser lida a distância.

Meus enteados, de 14 e 18 anos, perguntaram se aquilo era de fato uma alusão ao nazismo. Expliquei que possivelmente, já que Heil, Hitler (Salve, Hitler) era uma conhecida saudação nazista, familiar a todos que [sic] falam alemão e aos que sabem um pouco mais sobre a Segunda Guerra.

A articulista da Folha, revelando ser menos sensata que seus enteados adolescentes, que afinal se perguntaram se aquilo “era de fato” uma alusão ao nazismo, não só lhes respondeu positivamente como publicou um texto-denúncia em que sugere que a polícia “faça alguma coisa”. Vejamos o trecho:

O que nos fez pensar na conivência da comunidade à nossa volta. E na das autoridades. Por que a polícia não faz nada? O mais velho perguntou. Naquele momento, eu não tinha resposta. Precisei voltar de viagem e conversar com uma advogada criminalista para saber.

Os leitores catarinenses logo se deram conta do imbróglio, e o jornal amenizou o título da coluna (“Fui surpreendida muito provavelmente por uma saudação nazista”), substituindo “saudação muito provavelmente nazista” por “possível saudação nazista” e acrescentando ao final a sua justificativa editorial: “É incorreto afirmar que a inscrição Heil no telhado dos imóveis “muito provavelmente” seja uma referência a uma saudação nazista, como publicado em versão anterior deste texto”. Como se vê, a diferença entre o original e a nova versão é muito sutil e, para piorar as coisas, não toca na questão central.

A imprensa da extrema direita, que logo identificou certo “esquerdismo” no texto, e as redes sociais logo se levantaram e, como o clima está para criminalização e processo, não faltam advogados a oferecer seus serviços à família Heil, cujas casas de aluguel para temporada de férias foram tachadas de núcleo nazista. O jornalismo “profissional”, de que tanto se jacta a imprensa burguesa, ao que tudo indica, não é à prova de mentiras provenientes da mais descarada falta de apuração.

O “espírito de jornalista” que autora reconhece em si mesma talvez seja mais bem descrito como “espírito de fofoqueiro”, que ouve uma história e a passa adiante acrescida de alguns floreios e de uma boa dose de sensacionalismo. Faltou verificar a veracidade da informação. Qualquer “agência de checagem” poderia atestar a falta de apuração do fato, mas esse tipo de empresa só é contratado quando a imprensa quer acusar de “mentiroso” algum político do campo adversário.   

A articulista, imersa na sua versão dos fatos, “muito provavelmente” fruto de seus preconceitos, usa seu espaço no jornal para pedir o enquadramento do dono das casas em algum tipo criminal, sugerindo que o Brasil deva ampliar a vigilância e o aparato de punição a manifestações (supostamente) nazistas. Diz ela:

Em diversos países, aquelas fachadas configurariam apologia – na Alemanha, qualquer tipo de referência ao nazismo é crime e as redes sociais também são punidas por qualquer manifestação dessa ordem. No Brasil, a lei prevê punição apenas para o uso da suástica, algo que precisa ser revisto com urgência já que o neonazismo utiliza códigos diversos, como o 88 (repetição da oitava letra do alfabeto, HH de Heil, Hilter) e vem criando outros a cada dia, na velocidade do mundo digital, para se comunicar com seus adeptos sem policiamento. De qualquer forma, como vim a saber, mesmo com a nossa legislação, há brechas para impedir o uso do Heil.

Graças às redes sociais, que, na opinião dos entusiastas do PL 2630, são um “antro de mentirosos”, todos ficamos sabendo que “Heil” é um sobrenome bastante comum no estado de Santa Catarina, donde o ridículo de procurar “brechas para impedir o [seu] uso”. O “espírito de jornalista” da colunista, no entanto, não parou por aí. Vejamos o gran finale:

Já planejando tirar uma foto para esta coluna, pedi para o meu companheiro estacionar perto das casas. Eu e meus enteados descemos. Cogitei tocar a campainha, talvez conversar com os moradores, mas fiquei receosa de envolver os garotos numa situação imprevisível – uma vez quase apanhei ao fotografar uma casa na colônia Witmarsum.

Ficamos um pouco por ali. Eu tirando fotos, os dois fitando as construções. Num certo momento, virei para o lado e vi o rosto do mais novo, a expressão triste emoldurada pelo capuz de moletom. Lembrei o que ele tinha passado havia poucas semanas: o medo de ir para aula e ser morto a tiros ou facadas quando anunciaram possíveis ataques – um terço dos episódios ocorridos em escolas do país é ligado ao neonazismo.

Chamei os dois para ir embora. Embarcamos num silêncio soturno que só foi rompido quando chegamos ao nosso destino.

O tom poético-dramático das palavras da autora do texto talvez seja fruto de sua atuação como escritora. A propósito, há cerca de dois meses, ela foi objeto de reportagem da Gazeta do Povo, na qual ela própria se descreve desta maneira:

“Eu consegui descarregar boa parte dessa criação incessante quando trabalhei em agências de publicidade”, diz, referindo-se aos 16 anos em que atuou como redatora em São Paulo. Ainda assim, naquela época, a escritora curitibana tirava noites e madrugadas para escrever ficção. Formada em Jornalismo, a ficha caiu durante a faculdade, quando começou seu estágio em uma emissora de televisão. Na ilha de edição, pensou que as imagens da enchente poderiam ter outro enredo. “Aí vi que narrar as coisas como elas são não era pra mim mesmo. Eu gosto de inventar”.

Bem, de falta de sinceridade não se pode acusar a sra. Madalosso, mas o que esse episódio põe às claras é a falácia do monopólio da verdade que alguns acreditam estar no suposto “profissionalismo” da imprensa burguesa. O jornal, por certo, argumentará que não é responsável pela opinião de seus colunistas, mas, se, dentro de seu restrito time de emissores de opinião, não consegue impedir a publicação de uma falsa denúncia com potencial de prejudicar uma pessoa inocente, como pretende cobrar das plataformas das redes sociais que se responsabilizem criminalmente por qualquer publicação de qualquer usuário?

Diante disso tudo, soa irônico o empenho dessa mesma imprensa na aprovação do projeto de censura às redes sociais, que, sob o pretexto de moralizar o noticiário, expurgando da internet a mentira (dos outros), pretende restringir a si o controle da informação. Por mais que o projeto não seja apresentado como um tipo de censura, é esse o seu efeito imediato.

O infeliz episódio desencadeia outras questões, que vão além do erro de informação. A autora, com base no percentual de eleitores que votaram em Bolsonaro na última eleição, atribui ao povo de Santa Catarina conivência com o nazismo, o que foi percebido por vários leitores como ofensa de caráter xenófobo, coisa que vem sendo criminalizada por ser justamente um comportamento… nazista!

O youtuber Monark, como convém lembrar, foi tachado de nazista e, ato contínuo, perdeu a monetização e depois o próprio canal por ter, durante uma conversa com Tabata Amaral e Kim Kataguiri, aventado a possibilidade de haver um partido nazista legalizado.  Se Tabata ficou indignada ante essa perspectiva, Kataguiri, ao contrário, concordou com o entrevistador, mas não só escapou do cancelamento como auferiu vantagem financeira em razão de seu posicionamento. Isso porque, processado pela professora de filosofia Márcia Tiburi, que o acusou de “apologia do nazismo”, foi inocentado pelo juiz, que imputou a ela o pagamento de indenização a ele por causa da “ofensa”.

Como se vê, a punição desse tipo de delito depende de quem acusa, de quem é acusado e de quem julga, situação que é mascarada pelas diferentes formas de interpretar a questão caso a caso. É por essas e por outras que criminalizar opinião dá ao Estado burguês uma grande margem de arbítrio sobre todos os cidadãos.

A articulista da Folha, preocupada com o suposto conluio de neonazistas para perpetrar o assassinato de crianças nas escolas (um dos argumentos arguidos em defesa do PL das Fake News, que, em tese, impediria a disseminação do “discurso de ódio”), achou-se no dever de acusar a existência de um núcleo nazista a céu aberto no interior de Santa Catarina. Mais que isso, chegou a consultar uma advogada criminalista, que aparentemente lhe deu sustentação jurídica, afirmando ser possível “encontrar brechas” na lei vigente para criminalizar o homem que botou o sobrenome no telhado da casa.

O ocorrido mostra que a liberdade de expressão, não a sua supressão ou a sua limitação, é a única maneira de fazer a verdade aflorar. Se dependêssemos apenas do jornal “profissional” que permitiu a publicação do texto, não saberíamos o tamanho do erro cometido. Ao tratar o caso como mera “opinião de articulista”, substituindo no título “muito provavelmente” por “possível”, o jornal adota uma estratégia que lhe pode ser útil em caso de processo judicial, mas silencia sobre a falsidade da denúncia. A verdade apareceu (bem rápido, aliás) nas redes sociais, o “antro de mentirosos”.  

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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