A luta ideológica, sobretudo em tempos de guerra, é uma necessidade premente.
Para os comunistas, o termo imperialismo não é uma categoria moral, nem um insulto. É uma definição cuja aplicabilidade a um determinado Estado depende de uma série de critérios bem concretos.
1- Nada de novo na subordinação da social-democracia à NATO e no enfraquecimento da consciência anti-imperialista
Um dos factos mais gritantes da situação política da esquerda no Estado espanhol é a grande debilidade das mobilizações das organizações operárias e populares contra a NATO e o imperialismo euro-estado-unidense. Este facto é mais gritante ainda se se contrastar com as grandes manifestações havidas por ocasião do Referendo da NATO em 1986. Apesar da esmagadora pressão propagandística efetuada pelo governo PSOE, quase 40% das pessoas que votaram pronunciaram-se pelo NÃO e no Euskadi, Catalunha e Canárias a maioria votou pelo NÃO. Isso permite comprovar as mudanças abissais na consciência da classe operária, que ainda mantinha o alto grau de organização e de luta ideológica dos últimos anos da ditadura. A transição e as enormes consequência do desaparecimento da URSS ainda não as haviam destruído.
Além disso, mais recentemente, as manifestações contra a invasão do Iraque – de forte conteúdo anti-imperialista – trouxeram milhões de pessoas às ruas e foram das mais maciças do mundo, se bem que seja preciso recordar que as referidas manifestações responderam também a objetivos eleitorais do PSOE e da IU, bem engraxados pelos media afins.
Na atualidade, o longo processo de destruição ideológica, política e organizativa da consciência de classe e anti-imperialista, que reflete tanto o trabalho pelo PSOE e sobretudo por Unidas Podemos, como a enorme debilidade das organizações revolucionárias, traduz-se numa derrota ideológica que permitiu a expansão sem resistência do discurso imperialista.
A tudo isso é preciso somar a maciça propaganda de guerra efetuada por todos os grandes meios de comunicação. A censura dos media russos e o veto a opiniões diferentes foram efetuados de forma coordenada por todas as corporações mediáticas. Respondiam assim, com disciplina militar – nunca melhor dito – à Iniciativa de Alerta Antecipada TNI [1], dirigida pela BBC de Londres e instaurada a partir da pandemia Covid. O efeito sobre a consciência anti-imperialista das massas foi devastador. A caracterização de Putin como o grande malvado e, por extensão, da Rússia como culpável da guerra contra a Ucrânia e responsável pela grave deterioração das condições de vida da grande maioria da população – apesar da relação direta desta com as sanções impostas à Rússia pelos EUA e sobretudo pela UE – estão contribuindo decisivamente para justificar a intervenção da NATO, o envio de armas às Ucrânia fascista e o incremento sem precedentes dos gastos militares, com repercussões muito graves na carestia da vida e no desmantelamento dos serviços públicos.
Todas estas decisões, incluído o desaparecimento prático do direito à informação – agravado pela criação do Fórum contra a Desinformação [2] no âmbito da Estratégia de Segurança Nacional dirigida pelo General Ballesteros – foram aprovadas, sem oposição relevante por parte da esquerda institucional, incluídas as auto-denominadas esquerdas independentistas, também alinhadas no fundamental com um “nem-nem nismo” que na prática neutraliza posições anti-imperialistas.
A este respeito, cabe concluir que tanto os grandes sindicatos como a esquerda institucional são instrumentos do Estado e não têm uma lógica diferente dos aparelhos de poder da burguesia.
A posição da outras organizações extra-parlamentares – anti-capitalistas, anarquistas ou trotsquistas – têm também um largo percurso. Parte da sua caracterização da URSS como país imperialista e centrou-se, desde o seu desaparecimento, na desqualificação dos governos dos diferente países que sofreram ataques por parte das potências imperialistas.
Este coletivo têm mantido discursos qualificados como nem-nems, que sistematicamente equiparam os dirigentes dos países agredidos pela NATO, ou por potências imperialistas, com os seguintes slogans: nem Bush nem Sadam; nem NATO nem Milosevic; nem NATO nem Kadafi, etc. Estas colocações, que agora se reeditam com o “nem Putin nem NATO” contribuíram e continuam a contribuir para escorar o discurso oficial e justificar na prática as agressões imperialistas.
2. A partir de posições comunistas, tem fundamento a caracterização da Rússia como Estado imperialista e, em consequência, da guerra atual como guerra inter-imperialista?
2.1 As mudanças na posição política da Rússia
Nenhuma das atitudes anteriormente citadas é nova. O que, sim, surge no cenário pela primeira vez é a análise que estão a realizar organizações comunistas revolucionárias com possível influência sobre novas organizações que também se consideram revolucionárias e que se referem sobretudo à Catalunha e Euskal Herria.
A partir destas posições, auto-definidas como marxistas-leninistas, identifica-se o Estado russo como imperialista. Por outro lado, afirmando a defesa do Direito de Auto-determinação das Nações, apenas se relaciona este direito democrático básico e central da posição leninista com a sua reclamação concreta por parte dos povos do Donbass, massacrados pela Ucrânia fascista e que parece ser o desencadeador imediato da intervenção militar russa. Além disso, passa-se por alto a história da NATO desde a sua criação como ferramenta militar e política do imperialismo contra o primeiro estado operário da história, assim como o seu papel decisivo que transcende o desaparecimento da URSS, na subordinação da UE pelo imperialismo dos EUA.
Após a queda da URSS em 1991 a NATO comprometeu-se com a Rússia, em troca da dissolução do Tratado de Varsóvia, a não expandir-se na direção Leste. Desde então, 14 países da órbita soviética integraram-se na NATO e é evidente que o cerco ao país com os maiores recursos naturais do mundo e sua desconexão com a UE, independentemente do seu caráter capitalista, constitui-se no objetivo prioritário do imperialismo estado-unidense.
Ao mesmo tempo, e desde o fim da II Guerra Mundial, a aliança da NATO na Europa, primeiro com os restos do nazismo alemão ocupando cargos dirigentes no exército da RFA e chefias das Forças Aliadas da NATO para a Europa Central [3] e, atualmente com grupos nazis europeus, especialmente os de países da órbita soviética – dentre os quais destacam-se os ucranianos – constituiu-se na ponta de lança da penetração do imperialismo organizando e executando atos terroristas bem documentados [4].
A interpretação materialista dos processos sociais requer análises concretas da realidade concreta e da sua evolução. O processo seguido pelo Estado russo desde o desaparecimento da URSS, e sobretudo desde o desaparecimento de Yeltsin, mostra como, sem deixar de ser um Estado capitalista, muda suas alianças internas e em política externa em função das ameaças “ocidentais”.
Os oligarcas russos construíram o seu poder económico sobre as privatizações em grande escala que se produziram o desmantelamento da URSS sob a batuta do imperialismo. Valham como referência as palavras de um técnico estado-unidense [5] que assistiu ao desmantelamento maciço das estruturas económicas e sociais da União Soviética: “Dei-me conta rapidamente de que o plano de privatizações da indústria russa ia ser efetuado do dia para a noite, com custos muito altos para centenas de milhares de pessoas (…) iam-se fulminar dezenas de milhares de empregos. Mas além disso as fábricas que se iam encerrar abasteciam a população de escolas, hospitais, cuidados sanitários e pensões desde o berço até à tumba. Informei Washington de tudo isso e disse-lhes que ali não ia restar rede alguma de segurança social. Compreendi claramente que se tratava precisamente disso; queriam eliminar todos os restos possíveis do Estado para que não voltasse o Partido Comunista”.
As terríveis consequências sobre a população russa, com o aumento da mortalidade, suicídios, alcoolismo, analisei-as aqui [6] e curiosamente foi a Bielorússia de Lukasenko que reverteu as privatizações, opondo-se aos mandatos do FMI. Os resultados em termos de mortalidade por tuberculose podem ser observados neste gráfico.
A chegada de Putin ao poder em 31 de Dezembro de 1999, que não implica a modificação do caráter capitalista do Estado russo, implica sim uma diminuição progressiva do poder económico e da influência política dos oligarcas mais estreitamente ligados ao “ocidente”. São os que obtiveram suas propriedades do roubo maciço de empresas públicas e de recursos naturais da URSS e serviam como cabeças de ponte da penetração do imperialismo norte-americano e das alianças políticas correspondentes.
Valham como exemplo o encarceramento e expropriação de potentados como Vladimir Gussinsky e Mikhail Khodorovsky. Estes, como outros oligarcas russos, construíram seus negócios durante as privatizações maciças de propriedades públicas da URSS na época de Yeltsin. O processo, que provocou uma sobremortalidade estimada em seis milhões de pessoas e que destruiu a sociedade dos países da ex-URSS, foi dirigido principalmente pelo vice-primeiro-ministro de Yeltsin, Anatoli Chubais, vinculado ao programa da USAID, administrado pelo diretor do Instituto de Harvard para o Desenvolvimento Internacional (HIIDD) [7].
Vladimir Gussinsky, firme apoio de Boris Yeltsin, constituiu em 1989, ao abrigo da Perestroika, o negócio mediático “Media Most” – proprietária do principal canal privado de TV – junto com a empresa consultora estado-unidense APCO. Em 1994 criou um dos maiores bancos privados da Rússia, o Most Bank, e uma série de empresas construtoras. Foi fundados e presidente do Congresso Nacional Judeu. Detido na Espanha no ano 2000 por uma solicitação de extradição do Promotor Geral da Rússia, foi posto em liberdade pelo juiz Garzón. Vendeu os ativos das suas empresas por 300 milhões de dólares. Em 2007 obteve a nacionalidade espanhola e prosseguiu seus negócios mediáticos em outros países como Israel e Ucrânia [8].
Mikhail Khodorkovsky, também assessor de Yeltsin, foi nomeado vice-ministro do Combustível e Energia da Rússia em Março de 1993. Durante a época de privatizações maciças comprou através do seu banco Menatep a empresa petrolífera estatal Yukos. Em 2003, Khodorovsky era o homem mais ricos da Rússia e o décimo sexto na lista da Forbes, com um património de 15 mil milhões de dólares. Foi preso pelo governo de Putin, acusado de fraude fiscal, malversação de fundos e lavagem de dinheiro. Os ativos da empresa foram congelados e transferidos em 2006 às empresas estatais russas Rosneft e Gazprom [9]. Foi considerado preso de consciência pela Amnistia Internacional. Atualmente vive em Londres.
Estes e muitos outros personagens que exerciam sua influência em meios de comunicação e organizações políticas, propensos aos EUA, e que foram tratados pelos media ocidentais como vítimas da censura política por parte de um Estado totalitário que perseguia os democratas, constituem uma boa expressão da viragem política do governo russo após a chegada de Putin ao poder. Muitos outros, como Petr Avn, que trabalha para a Royal Academia de Londres ou Mikhail Friedan, vinculado à Universidade de Yale, têm nacionalidade israelense ou ucraniana, seus interesses estão vinculados aos EUA e posicionaram-se contra a intervenção militar russa na Ucrânia [10].
A política russa, interna e externa, desde que Putin chegou ao poder, sem deixar de ser capitalista, nada tem a ver com a da Rússia de Yeltsin. Fundamenta-se na recusa do povo russo a ser convertido num grande posto de gasolina no meio da estepe e irrelevante em outros aspectos, como disse um ex-assessor de Obama e economista de Harvard [11]. Putin chega ao poder quando a Rússia estava a ser desmembrada, humilhada e saqueada pelo imperialismo euro-estado-unidense com a colaboração decidida “daqueles que têm a sua mansão em Miami, o seu iate na Riviera francesa e, o que é pior, o seu coração e a sua cabeça também ali”, como disse o presidente russo num discurso recente, tratando-o como “quinta coluna” do ocidente [12]. A estupidez das sanções contra as propriedades destes magnatas, aplicadas pelos EUA e a UE, esperando que exercessem pressão para modificar as políticas do governo russo, só é comparável ao resto das sanções contra a sua economia, que estão a cair como um boomerang sobre o ocidente, ao mesmo tempo que aceleram as mudanças nas alianças estratégicas da Rússia e de outros países.
Ignorar estas mudanças, assim como a viragem nas alianças com a China e o resto das nações do BRICS, com os países da África, Ásia, Oriente Próximo e América Latina, que sem constituir, longe disso, uma aliança anti-capitalista, estão realmente a construir um bloco confrontado com o imperialismo euro-estado-unidense, é um grande erro de análise para as organizações comunistas de países integrados na NATO.
2.2. Será a Rússia um país imperialista?
A partir de abordagens materialistas, a atribuição do caráter de imperialista a um Estado exige uma análise concreta e fundamentada das suas características, especialmente quando não se trata de um estudo teórico e sim das bases sobre as quais se erige a posição política perante uma guerra de grandes dimensões como a atual.
Esta caracterização, realizada, insisto, a partir da afirmação de posições leninistas, não foi contrastada com a análise de Lenine em “O imperialismo, fase superior do capitalismo” no qual se especificam com clareza os princípios básicos que definem um Estado capitalista como imperialista e que são, sem dúvida, bem conhecidos por organizações marxistas-leninistas. Tais critérios são:
1- A concentração da produção e do capital e a criação de monopólios.
2- Os bancos e seu novo papel.
3- A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação do capital financeiro e da oligarquia financeira.
4- Importância destacada da exportação de capitais.
5- Grandes monopólio capitalistas internacionais repartem o mundo entre si.
Lenine, com base nestes princípios, analisou e comparou os dados concretos que permitiam caracterizar como imperialistas as grandes potências do momento: Alemanha, França e Grã-Bretanha. Diversos autores marxistas, como Renfey Clark, Roger Annis [13] (2016) e Stansfield Smith (2019), realizaram análises importantes, bem documentadas, sobre as características do Estado russo. Pude atualizar boa parte delas; outras são anteriores à intensificação das sanções contra a Rússia, que sem dúvida não contribuíram para deteriorar e sim, muito pelo contrário, para melhorar as posições que aqui se assinalam:
1. As grandes empresas russas entre os grandes monopólios internacionais.
Os dados da Forbes para 2022 [14] são os seguintes: das 10 maiores empresas, 5 são dos EUA, 3 da China, 1 da Arábia Saudita e 1 do Japão. Entre as 100 primeiras empresas, a Rússia tem só 2, Gazprom e Rosneft, de propriedade estatal maioritária, nos postos 49 e 81. E em 2019 tinha 4 nos postos 43, 47, 73 e 98.
As vendas em 2018 das 25 companhias russas incluídas no ranking das 2.000 maiores companhias do mundo, (em 2022 haviam-se reduzido a 23) implicavam só 1,45% do total.
2. Produção russa de produtos manufaturados.
Em 2015, a China ocupou o primeiro lugar com 20% da produção mundial e os EUA o segundo com 18%. A Rússia ocupou o posto número15, por trás da Índia, Taiwan, México e Brasil, com só 1% do total mundial [15].
3. Exportações russas, fundamentalmente de matérias-primas.
Os países imperialistas exportam fundamentalmente mercadorias de alta tecnologia e de grande valor acrescentado, ao passo que os países menos desenvolvidos exportam matérias-primas aos preços determinados pelas grandes potências no mercado mundial.
Segundo o Banco Mundial, no ranking geral de exportações, a China ocupa o primeiro lugar, seguida dos EUA. A Rússia tem o posto 17 e 82% das suas exportações são matérias-primas, enquanto os produtos tecnológicos, incluídos os militares, só representaram 85 [16].
4. O papel internacional da banca russa.
O principal banco russo ocupa o lugar 66 entre os maiores bancos do mundo. Os ativos do sector bancário russo representam só 75% do PIB, quando nos países mais desenvolvidos costumam superar os 100% do PIB. Por outro lado, na Rússia predominam os bancos pequenos, maioritariamente estatais, procedentes de estruturas soviéticas [17].
5. O papel da Rússia na exportação de capitais.
Uma das características de um país imperialista, segundo Lenine, é a exportação de capitais. Na Rússia, a “exportação de capitais” adquiriu a forma fundamental de fuga de capitais. Desde que Putin acedeu ao governo em 1999, até 2018, calcula-se que a saída de capitais russos seja superior a um milhão de milhões de dólares [18]. O Banco Central da Rússia calculou que a fuga de capitais em 2018 ascendeu a 66.000 milhões de dólares [19].
Por outro lado, no ranking das 100 maiores empresas não financeiras, classificadas pelos seus ativos no estrngeiro – elemento chave para avaliar a exportação de capital financeiro – figuram 20 corporações dos EUA, 14 da Grã-Bretanha, 12 da França, 11 da Alemanha, 11 do Japão, 5 da Suíça e 5 da China [20](20). Nenhuma delas é russa.
Na participação na riqueza financeira e não financeira do mundo, os EUA têm 31%; dos países restantes, só a China tem mais de 10%, ou seja, 16,4%. A Rússia representa uns exíguos 0,7%.
A partir destes dados, a única conclusão possível é que na exportação de capitais com fins produtivos a Rússia não ocupa um papel destacado no cenário mundial e é impossível qualificá-la como país imperialista.
6. O papel da Rússia na “divisão do mundo entre grandes potências”.
Este último aspecto, na hora de definir as características imperialistas de um Estado, pode ser analisado a partir de três pontos de vista: os orçamentos militares, a exportação de armas e as bases militares no estrangeiro.
Só no campo militar a Rússia manifesta o seu poder, ainda que este aspecto isolado seja insuficiente, segundo Lenine, para tipificá-lo como estado imperialista. A este respeito, é preciso destacar que o poderio militar da Rússia capitalista, sobretudo quando a desenvolvimento armamentístico e sobretudo no que se refere a armamento nuclear, procede da época soviética e são empresas públicas.
É preciso assinalar que tanto na época da URSS – na qual seu viu obrigada a participar numa descomunal corrida armamentística – como depois, a Rússia esteve constantemente ameaçada pelo imperialismo e pela NATO.
Contudo, ainda que a Rússia seja um dos principais países exportadores de armas do mundo, as exportações russas neste campo são menos da metade das dos EUA. Enquanto as exportações de armas dos EUA aumentaram 25% entre 2013 e 2017, as da Rússia reduziram-se 7,1% no mesmo período [21].
Quanto às bases militares no estrangeiro, a Rússia tem 15 e só duas fora de países da ex-URSS, Vietname e Síria. Os EUA têm mais de 800 bases no estrangeiro.
Quanto ao orçamento militar, os dados oficiais dos EUA para 2023 indicam a cifra de 860.000 milhões de dólares. Este montante ascende a mais um milhão de milhões de dólares se somarmos o de todos os países da NATO. O orçamento militar da Rússia para 2022 foi de 61.700 milhões de dólares, menos de 10% do dos EUA e pouco mais de 5% do conjunto de países da NATO.
A análise do Estado russo, nos termos propostos por Lenine, situam-no muito atrás de outras grandes potências capitalistas e nada comparável à posição da URSS antes do seu afundamento.
A Rússia é agora um país capitalista de terceiro ou quarto nível, com a única exceção da sua capacidade militar, em boa parte herdada da época soviética e fortalecida agora diante da evidência de um ataque da NATO, que se vem gestando há anos.
3. Podem as intervenções militares russas em outros países serem definidas como imperialistas?
Em 2011, a Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, deu sinal verde à destruição da Líbia. Nesse momento, tanto a China como a Rússia, países com direito de veto, abstiveram-se. A coligação militar inicial formada pela Bélgica, Canadá, Catar, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Itália, Noruega e Reino Unidos ampliou-se até 16 países. Nem a Rússia nem a China fizeram parte desta coligação.
A partir daí, a posição destes dois últimos países mudou radicalmente. Quando os estados da NATO tentaram aplicar a mesma receita na Síria, a China e a Rússia utilizaram o seu direito de veto.
Em 2015, o governo sírio, após o ataque mal encoberto dos EUA, França e Grã-Bretanha e o apoio destas potências às facções mais brutais do ISIS, pediu formalmente ajuda militar à Rússia. O Parlamento russo, por unanimidade, apoiou esta intervenção através de forças aéreas na base militar russa de Tartus no país árabe. Apesar das vitórias militares da Síria com o apoio da Rússia sobre o Estado islâmico e suas potências patrocinadoras, os EUA continuam a ocupar na atualidade um terço da Síria e a roubar o seu petróleo.
No Oriente Próximo, a partir da vitória militar do Hezbolah sobre Israel em 2006, começou-se a articular um bloco de alianças, o Eixo da Resistência, que sob abordagens exclusivamente políticos define-se por objetivos anti-imperialistas e anti-sionistas e em defesa da soberania dos seus povos. Este Eixo, cujo desenvolvimento continua, inclui o Hezbolah e outras forças nacionalistas libanesas, a resistência palestina, Síria Iémen, Irão e Iraque.
Poderá qualificar-se de intervenção imperialista o apoio militar da Rússia à Síria? É evidente que não.
Desde as chamadas “primaveras árabes”, a destruição da Líbia e as tentativas de devastação da Síria, a fórmula utilizada pelas potências coloniais em diferente países africanos foi a mesma: provocar atentados terroristas com organizações vinculadas ao Estado Islâmico, desestabilizar os seus governos e reforçar a sua presença militar para “ajudar” seus débeis Estados.
Há pouco mais de dois anos, um número crescente de países africanos decidiu por um ponto final nesta espiral neocolonial. O Mali, Burkina Faso, República Democrática ou a República Centro-Africana, entre outros, solicitaram ajuda militar à Rússia e estão obrigando as forças militares da potências coloniais, França, Reino Unido e EUA, a abandonarem os seus países.
Sem negar, naturalmente, que as empresas russas ou chinesas tenham interesse em aceder às matérias-primas africanas, é evidente que a presença militar da Rússia e as relações comerciais que este país e a China estão a estabelecer em África, nada têm a ver com a depredação selvagem dos seus recursos, com os golpes de Estado e assassinatos de líderes africanos, executados de modo constante, desde a sua “independência”, pelas potências coloniais.
O apoio militar prestado pela Rússia a estes países, solicitado formalmente pelos seus governos e saudado pelos seus povos, poderia qualificar-se de intervenção imperialista? A partir da análise concreta da situação destes países, e por agora, está claro que não.
Sem pretender analisar o que implica a aliança dos BRICS, a Rota da Seda, a Organização de Cooperação de Shangai ou outras estruturas, há algo óbvio que salta à vista: todos eles são países não socialistas que confrontam a hegemonia política e militar do imperialismo dos EUA.
As modificações geopolíticas que as novas alianças estão a provocar no Oriente Próximo, com a incorporação a este Eixo do Irão, Turquia ou Arábia Saudita, com o isolamento e a decomposição em curso do Estado sionista, ou as mudanças em curso no continente africano, estão a indicar um isolamento sem precedentes dos EUA e da UE.
Também é evidente que muitos destes países estão submetidos a sanções ou bloqueios, a intervenções militares mais ou menos encobertas e tentativas de desestabilização por parte do imperialismo euro-estado-unidense quando não se submetem aos seus ditames. Estes países decidiram buscar alianças económicas e comerciais, incluídas as compras de armamento, no chamado Eixo Multipolar que lhes permitam resistir aos ataques do imperialismo “ocidental”.
Este novo multipolarismo – baseado não em mudanças políticas, e muito menos ideológicas, e sim na soberania e independências dos seus Estados frente ao imperialismo – não permite fazer conjecturas sobre sua possível intervenção em apoio a revoluções socialistas em qualquer parte do mundo. Mas é evidente libertação da bota imperialista estabelece novas correlações de forças à escala internacional que nenhum comunista deveria ignorar.
Nestes países, incluídos naturalmente a Rússia e a China, a luta de classes continua e continuará. O papel das organizações não deve ser outro senão apoiar as lutas da classe operária nos mesmos e possíveis revoluções que, se forem legítimas e não “revoluções coloridas” promovidas pela NATO, terão uma identidade também nitidamente anti-imperialista. E ao mesmo tempo, especialmente em Estados membros da NATO como o nosso, é preciso valorizar o facto transcendental de que o domínio predatório do imperialismo euro-estado-unidense-sionista se encontra, pela primeira vez desde há muito tempo, com limites reais à escala internacional.
As análises realizadas em trabalhos anteriores permitem identificar a intervenção militar da Rússia na Ucrânia contra a NATO como uma necessidade existencial e iniludível para a Rússia. Além do facto de a estratégia imperial anglo-saxónica, desde há mais de um século [22], identificar o despedaçamento da Rússia e sua desconexão com o resto da Europa como condição para o seu domínio planetário, há vários factos históricos recentes que mostram os passos dados nessa direção contra a URSS e contra a Rússia após o seu afundamento:
- A criação da NATO em 1949, seis anos antes da constituição do Tratado de Varsóvia e implementado após a entrada da RFA na mesma, incumprindo os Acordos de Yalta.
- A violação dos acordos de 1991, pelos quais, em troca da dissolução do Tratado de Varsóvia, a NATO não se expandiria para Leste. É bem conhecido que desde então 14 novos países antes incluídos no referido Tratado incorporaram-se na NATO.
- A Aliança dos EUA e da NATO, desde o rescaldo da II Guerra Mundial, com organizações fascistas herdeiras diretas da rede nazista. A rede Stay Behind, como é bem sabido, operou e opera de forma continuada, mediante ações terroristas, tanto nos países da Europa ocidental como da oriental.
- O cerco militar da NATO à Rússia ao longo de todas as suas fronteiras, com laboratórios de armas biológicas.
- O incumprimento dos acordos de Minsk que, como se soube, tinham como objetivo para a NATO ganhar tempo a fim de armar a Ucrânia.
Deixo para o fim a menção ao golpe de Estado fascista de 2014 na Ucrânia, dirigido pela NATO, EUA e UE; ao massacre da casa dos sindicatos de Odessa e à matança perpetrada desde então contra os povos das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk em que foram assassinadas 14 mil pessoas civis, segundo dados da própria ONU.
Perante todos estes factos, a intervenção da Rússia no Donbass, a pedido dos seus governos auto-proclamados independentes, no exercício do seu Direito de Auto-determinação, não pode ser qualificado com um mínimo de rigor histórico como de “guerra inter-imperialista”.
A análise da longa aliança entre a NATO e o fascismo, que pode ser consultada aqui [23], e o seu fortalecimento com o apoio inegável do branqueamento do mesmo efetuado sistematicamente pelos governos da UE mediante o seu apoio aos nazis ucranianos, é um elemento chave para desvendar os mecanismos tanto do ataque imperialista no exterior como no interior dos nossos países.
A análise concreta da realidade da Rússia capitalista que, como creio haver demonstrado, impedem defini-la como país imperialista, e sobretudo a participação do Estado espanhol da NATO, o resultado devastador para os povos da UE das sanções contra a Rússia e a escalada militarista e repressiva que – ensaiada durante a pandemia – prepara seus mecanismos mais agressivos na projetada Lei de Segurança Nacional, exigem às organizações comunistas que adotem posições anti-imperialistas nítidas. E estas posições não podem ignorar, e muito menos negar, o direito de estes países de defenderem, também militarmente, sua independência e soberania.
A avaliação da realidade da luta de classe em cada um dos países do mundo não pode ser realizada à margem da compreensão do papel histórico concreto que o imperialismo euro-estado-unidense executa e das novas alianças que se estão forjando frente a ele que, sem serem socialistas, estão a confrontar a sua hegemonia.
Nossa classe e nossos povos necessitam análises precisas que lhes facultem levar a cabo suas tarefas históricas em épocas como as atuais, e ainda mais em tempos de guerra, quando suas consequências sobre a classe operária e as classes populares começam a provocar mobilizações de envergadura como as que estão a verificar-se em França [24] e também na Grã-Bretanha, Alemanha, Chéquia e outros países da UE e que, sem dúvida, vão intensificar-se.
Quando entre organizações comunistas se compartilham posições na luta de classes e utilizam-se métodos de análise que dizem beber das mesmas fontes teóricas, é necessário abrir caminhos de acordo, ou pelo menos vias de diálogo, que nos permitam cumprir com as tarefas históricas que nossa classe exige.
Porque, precisamente agora, necessitamos de toda a nossa inteligência, de todo o nosso entusiasmo e de toda a nossa força para estar à altura dos objetivos que nos assinalámos.
Fonte: Resistir.info