Temos aqui dois textos que servem de exemplo de como setores pequeno-burgueses distorcem os acontecimentos no Leste Europeu, falamos do conflito Rússia/OTAN-Ucrânia. São eles: “Ucrânia: Primeiro ano de uma aterrorizante guerra imperialista” – Esquerda Online; e “O posicionamento dos socialistas sérvios durante a Primeira Guerra Mundial” – Esquerda Marxista.
Um fato curioso desses dois artigos é que trazem à baila a questão da I Guerra Mundial, pois, é sabido, os socialistas russos se opuseram à guerra e preferiam a derrota da Rússia. No entanto, não se trata do mesmo fenômeno. Na I Guerra, a Rússia estava servindo a interesses de duas potências: França e Inglaterra, ela mesma não era um país imperialista. Os socialistas se opunham a que trabalhadores de diversos países se matassem entre si em uma guerra interimperialista em que as partes visavam abocanhar fatias do mercado mundial.
Fica claro o que estava em jogo no trecho que a própria Esquerda Marxista destaca de Rosa Luxemburgo: “a Sérvia avança hoje em direção ao litoral do Adriático, onde trava um verdadeiro conflito imperialista com a Itália nas costas dos albaneses, um conflito cujo resultado final será decidido não por nenhuma das potências diretamente interessadas, mas pelas grandes potências que dirão a última palavra sobre os termos de paz”.
A matéria da Esquerda Marxista inicia dizendo que: “O dia de hoje [24/02] marca um ano do início da Guerra na Ucrânia, um conflito que mobiliza as principais forças políticas e econômicas do mundo contemporâneo”. Antes de mais nada, é preciso analisar o que está contido na expressão “principais forças políticas”, pois a Rússia pode ser considerada apenas uma força regional. É um país atrasado que vive de vender commodities,não controla os principais mercados do mundo, muito menos é capaz de impor sanções e retirar países do sistema Swift, como os EUA fizeram com os russos. Portanto, não se pode colocar no mesmo patamar a Rússia e esse consórcio de potências que chamamos de imperialismo.
O artigo traz uma série de textos que tratam da posição de socialistas que datam do início do conflito entre Sérvia e Áustria-Hungria, que serviu de pretexto para o início da I Guerra Mundial, e reproduz uma carta do socialista sérvio Dušan Popovič a Christian Rakovsky.
No trecho seguinte vemos objeção daquele à guerra: “para nós, o fato decisivo era que a guerra entre a Sérvia e a Áustria era apenas uma pequena parte de uma totalidade, apenas o prólogo de uma guerra europeia universal, e esta última — estávamos profundamente convencidos disso — não poderia deixar de ter um caráter imperialista claramente pronunciado. Como resultado, nós – sendo uma parte da grande Internacional socialista e proletária – consideramos que era dever sagrado que nós nos opuséssemos à guerra resolutamente. (…) infelizmente, quase todos os outros partidos socialistas votaram por esta guerra!” (grifo nosso).
O que trecho acima diz é que, primeiro, os acontecimentos na Sérvia estavam inseridos dentro de um movimento maior do imperialismo e, segundo, que houve uma grande capitulação da esquerda que votou pela guerra, ou seja, pela defesa de determinados interesses imperialistas. Não se pode fazer uma analogia entre aquela guerra, suas motivações, e o que está ocorrendo entre Rússia e Ucrânia.
Examinando os fatos, tivemos, desde o fim União Soviética e o fim do Pacto de Varsóvia, uma expansão sem precedentes da OTAN em direção ao Leste Europeu até o quase completo cercamento da Rússia.
Em 2014, quando a Ucrânia tinha na Rússia o seu principal parceiro comercial, foi dado um golpe de Estado tramado pelo imperialismo que colocou os ucranianos contra os russos. Os dois governos fantoches que se seguiram fizeram a situação escalar até o ponto de Ucrânia estar prestes a ser admitida na OTAN, o que corresponderia a uma declaração de guerra contra a Rússia.
Vladimir Putin, desde 2014, começou uma grande corrida diplomática tentando impedir a manobra, mas percebeu que o imperialismo apenas ganhava tempo para armar a Ucrânia. No início de 2022, esgotados os recursos diplomáticos, a Rússia iniciou sua operação militar que, está muito claro, não passa de uma guerra defensiva. Os socialistas que se opuserem à guerra “em geral”, e não reconhecerem o direito de defesa dos russos, estarão se alinhando com o imperialismo.
No início do século XX, os socialistas deveriam ter feito oposição à guerra, como os bolcheviques o fizeram, porque não havia defesa dos interesses da classe trabalhadora que, no final das contas, iria apenas ser sacrificada para que uma pequena parte da burguesia internacional se impusesse sobre as demais. O trecho de Lênin que a matéria destaca deixa isso claro: “Se esta guerra fosse isolada, isto é, se não estivesse relacionada com a guerra geral europeia, com os objetivos egoístas e predatórios da Grã-Bretanha, Rússia etc., teria sido dever de todos os socialistas desejar o êxito da burguesia sérvia, pois esta é a única conclusão, correta e absolutamente inevitável, a ser tirada do elemento nacional na guerra atual”.
Se a Rússia tivesse simplesmente atacado a Ucrânia para, digamos, controlar sua produção de grãos, seria condenável; agora, quando o imperialismo utiliza os ucranianos em uma guerra por procuração a coisa muda totalmente de figura. Temos o bloco imperialista atacando um país atrasado e nosso dever é ficar do lado agredido pelo imperialismo.
Quanto ao texto da Esquerda Online, este passa boa parte do tempo caracterizando, muitas vezes corretamente, o que se passa no conflito. Por exemplo que o envio de armas para a Ucrânia “longe de acabar com a guerra, ele a prolonga e impulsiona a alturas mais aterrorizantes”. Ou que se trata “de parte de um projeto ainda maior para reafirmar o poder militar dos EUA (…) É uma guerra por procuração, entre dois campos imperialistas, em que a Ucrânia luta em nome do Ocidente”. Grifamos para mostrar o equívoco, uma vez que tratam a Rússia como imperialista.
A Esquerda Online também acerta quando mostra os ataques da burguesia contra a classe trabalhadora, como a seguir: “Os direitos populares e a democracia foram esvaziados sob o pretexto das ‘medidas especiais de guerra’ e da ‘unidade nacional’. O governo ucraniano já proscreveu vários partidos de oposição, destruiu os direitos sindicais e introduziu medidas duras contra os ‘desertores’”. E no trecho traz que o ministro da defesa, Ben Wallace, exige mais gastos militares e diz que estes devem ser centrais e que “são mais importantes do que o financiamento de aumentos salariais”.
No entanto, a matéria erra miseravelmente quando afirma que:
1) “a Rússia tentou estabelecer e consolidar o domínio econômico na região, principalmente através de seu controle do fornecimento de gás para a Europa. Paralelamente, a União Europeia e a Otan tentaram atrair os países vizinhos para a sua área de influência por meio de ofertas de cooperação econômica e de proteção militar”.
2) “A Rússia invadiu a Ucrânia não para proteger o povo ucraniano, mas para defender seus interesses militares e econômicos”.
3) “Putin procurou reconstruir o poder militar russo e utilizá-lo para manter o domínio de Moscou sobre seu ‘entorno próximo’ (…) o poder militar russo tem sido usado para salvar o regime brutal de Bashar al-Assad na Síria”.
Ora, se a Rússia estava vendendo gás para a Europa e estava prestes a inaugurar outra linha de fornecimento, o Nord Stream 2 – alvo da ira dos EUA –, que interesse poderia ter em estabelecer um conflito na região ao tentar ‘consolidar um domínio econômico’? A defesa de seus interesses militares e econômicos são um direito. A reconstrução do poderio militar foi uma exigência das próprias circunstâncias, uma vez que a OTAN não parava de cercá-la.
A questão da Síria merece uma atenção especial. A esquerda pequeno-burguesa mais se parece com uma sucursal do Partido Democrata dos EUA, pois sempre faz questão de condenar ‘regimes brutais’. Com essa concepção estreita, sempre acaba ficando do lado do imperialismo, que ninguém supera em termos de brutalidade. No caso do Afeganistão, por exemplo, após vinte anos de destruição, muitos lamentaram a saída dos invasores porque o Talibã seria um ‘regime brutal’. A Síria está sendo ataca pelo imperialismo, está sendo saqueada, teve seu PIB reduzido para 20%, mas não pode ser defendida porque tem um ‘regime brutal’.
Por fim, a Operação Militar Especial russa na Ucrânia revelou uma profunda influência do imperialismo sobre a esquerda pequeno-burguesa brasileira, que, via de regra, acusa absurdamente a Rússia de ser um país imperialista. O que demonstra que não compreenderam as ideias marxistas do que seja o imperialismo.





