Era uma sexta-feira,28 de fevereiro de 1935, às vésperas do Carnaval, quando faleceu Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a mulher que compôs a primeira marchinha da história, inaugurando o gênero. Ó, Abre Alas (Rosa de Ouro) é, até hoje, uma música que todo mundo já ouviu pelo menos uma vez na vida e que toca em todo carnaval pelos blocos de rua de todo o país.
“Ô, abre alas que eu quero passar
Ô, abre alas que eu quero passar
Eu sou da Lira não posso negar
Eu sou da Lira não posso negar
Ô, abre alas que eu quero passar
Ô, abre alas que eu quero passar
Rosa de Ouro é que vai ganhar
Rosa de Ouro é que vai ganhar”
Chiquinha Gonzaga começou a estudar piano ainda criança, como parte de sua educação que seguia os padrões aristocráticos da época. Iniciando suas aulas com o maestro Elias Álvares Lobo, aprimorava seu talento também com o padrinho Antônio Eliseu, que era flautista. Os dois ensaiavam com frequência, ela no piano e ele na flauta. No natal de 1858, aos 11 anos de idade, ela apresentou sua primeira composição musical, letrada por seu irmão José Basileu Filho (Juca), a Canção dos Pastores.
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Carioca, nascida em 17 de outubro de 1847, seu pai era um militar de alta patente e sua mãe filha de uma ex-escrava, relação que enfrentou muitos preconceitos — o casamento de seus pais só foi oficializado quando ela já estava com 12 anos e vários irmãos. Este contexto familiar deu à Chiquinha um senso de liberdade e justiça desde nova, o que mais tarde se desenvolveria em militância e ativismo político.
Aos 16 anos, casou-se com Jacinto Ribeiro do Amaral, 8 anos mais velho que ela, escolhido pela família. Jacinto era conservador, ligado ao comércio marítimo e de escravos. Na ocasião da guerra do Paraguai, ele decide levar a esposa junto a bordo do navio que carregava suprimentos pras forças armadas, afim de afastá-la do piano, algo que o incomodava. O ambiente extremamente violento com os funcionários e principalmente com os escravos foi algo determinante para transformar Francisca em uma abolicionista. E foi também nesta viagem que seu casamento entrou na crise fatal. O marido não queria que Chiquinha continuasse tocando piano, chegando ao ponto de mandá-la escolher entre a música ou o casamento. E Chiquinha escolheu a música dizendo “Pois, senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia”. Grávida do terceiro filho, Chiquinha o espera nascer e abandona o marido, uma atitude muito transgressora pros costumes aristocráticos. Então, rejeitada pela família, Chiquinha não tem onde morar e fica probida de criar os filhos.
Depois de Jacinto, Chiquinha se relaciona com João Batista Carvalho, um trabalhador da ferrovia Mogiana em Minas Gerais e um grande apreciador de música, os dois têm uma filha e vivem no estado mineiro por um tempo. Ao retornarem pro Rio de Janeiro, Jacinto se sente insultado pelo romance dos dois e processa Chiquinha Gonzaga por adultério. Uma acusação muito grave, que abala seu relacionamento e faz Francisca se ver novamente rejeitada pela sociedade e também afastada da sua última filha.
Isso tudo aconteceu até os seus 30 anos de idade, quando, marginalizada, Chiquinha passa a se dedicar exclusivamente à música por necessidade financeira, sendo as aulas de piano sua principal fonte de renda no primeiro momento. Também aprimorou sua técnica com o maestro português Artur Napoleão dos Santos.
O clima político e cultural estava quente e fértil para a expansão das principais aspirações de Francisca: a música popular, o abolicionismo e o republicanismo. A vida cultural urbana e noturna desenvolveu-se velozmente nos anos 70 e 80 do século XIX graças a instalação de iluminação pública a gás. Teatros e bares tiveram seus anos dourados e Chiquinha Gonzaga pôde fazer seu nome, ganhando notoriedade, principalmente como compositora.
Chiquinha foi pioneira em misturar uma formação musical clássica com ritmos e instrumentos populares como o Lundu, Choro e Maxixe e ao incluir violão, pandeiro, etc. Também causou reboliço com seu primeiro grande sucesso, a polca Atraente, por trazer elementos sensuais. Aos 37 anos é reconhecida como a primeira maestrina do Brasil e em seguida estreia como compositora teatral no Teatro Príncipe Imperial com a opereta A Corte na Roça, conquistando a admiração do compositor Carlos Gomes, considerado o maior músico brasileiro do momento.
Junto com a ascensão da carreira artística, Chiquinha Gonzaga mantinha um intenso ativismo político pelo fim da escravidão e pela República. Fazia campanhas financeiras para comprar a alforria de escravos, colava cartazes e aproveitava sua fama para influenciar pessoas fazendo discurso em suas apresentações. Além de fazer composições musicais criticando a ditadura que se instaurou em 1889, quando quase foi presa. Aos 51 anos engatou um namoro com um rapaz de 16 anos, o português João Batista Fernandes Lage, que era apresentado como filho em muitas ocasiões para evitar a fadiga. E quase aos 70 anos de idade torna-se a principal liderança do movimento que exigia o pagamento de direitos autorais aos compositores, fundando a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.
Aos 87 anos, Chiquinha nos deixa, mas seu legado e memória permanecem vivos. Uma mulher pioneira em quase tudo o que fez na vida, inconformada com as injustiças sociais e organizada politicamente. Da arte, ganhamos Chiquinha Gonzaga 77 peças teatrais e cerca de 2000 músicas, sendo de sua autoria integralmente 6 peças e 263 músicas.