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Rafael Dantas

Membro da Direção Nacional do PCO e diretor de redação do Jornal Causa Operária.

História da filosofia

Plekhânov e o materialismo francês do século XVIII

Nova publicação do partido vai tratar em profundidade de temas teóricos da maior importância para a formação marxista

A revista teórica do Partido da Causa Operária, chamada “Textos”, está em preparação. O Conselho Editorial escolheu uma lista de temas que serão expostos em profundidade com vistas à formação teórica marxista da militância partidária e do público em geral. Um desses temas é a história da filosofia materialista que, junto com a economia política clássica inglesa dos séculos XVIII e XIX e as teorias socialistas do início do século XIX, é uma das bases – foram superadas, por assim dizer – do socialismo científico elaborado inicialmente por Karl Marx e Friedrich Engels.

Escolhi escrever sobre esse tema e apresento aqui um esboço da pesquisa que está sendo preparada.

A principal obra do pai do marxismo russo, George Plekhânov, Ensaio sobre o desenvolvimento da concepção monista da história (1895), apresenta a questão da filosofia materialista da seguinte forma: 

“Que é ‘o materialismo no sentido filosófico habitual’?

“O materialismo é a antítese do idealismo. O idealismo procura explicar todos os fenômenos naturais, todas as propriedades da matéria, por esta ou aquela propriedade do espírito. O materialismo opera justamente ao contrário: procura explicar os fenômenos psíquicos por esta ou aquela propriedade da matéria, uma ou outra particularidade orgânica do corpo humano ou animal. Todos os filósofos para quem o primeiro dado é a matéria pertencem ao grupo dos materialistas e todos aqueles que tomam por fundamento o espírito ao grupo dos idealistas. Eis tudo o que se pode dizer do materialismo em geral, do ‘materialismo no sentido filosófico habitual’, já que o tempo edificou sobre a sua base superestruturas tão diversas que conferem ao materialismo de cada época um aspecto que o diferencia completamente do de outras épocas.”

Eis a introdução do problema filosófico que será tratado no primeiro capítulo dessa importante obra. Ela, conjunto, é uma polêmica com um dos principais representantes do populismo russo, em essência um filósofo idealista, Mikhailovski. Na polêmica, o materialismo francês do século XVIII é apenas o ponto de partida para a explicação de problemas mais complexos do materialismo histórico, da concepção marxista da história, que permeia todo o livro.

Esse primeiro capítulo lida com a origem da concepção materialista da história, desenvolvida por Marx e Engels a partir das concepções imperfeitas expostas pelos materialistas franceses do século XVIII, destacadamente por Holbach e Helvétius. Para preparar o público para um estudo mais aprofundado da questão que nos interessa (a contribuição da filosofia materialista precedente para a elaboração da teoria materialista da história de Marx e Engels), reproduzo aqui praticamente na íntegra o primeiro capítulo do livro de Plekhânov que considero ser do maior interesse de todo aquele que pretende conhecer profundamente e dominar os conceitos fundamentais da compreensão do mundo exposta pelo marxismo. Boa leitura!

“O materialismo francês do século XVIII” – primeiro capítulo do livro “Ensaios sobre o desenvolvimento da concepção monista da história”

Não necessitamos de expor aqui em pormenor a história do materialismo. Bastará aos nossos fins considerar o seu desenvolvimento depois da segunda metade do século XVIII. E, ainda aí, importa-nos sobretudo examinar uma das suas correntes (a bem-dizer a principal): o materialismo de Holbach, de Helvetius e dos seus adeptos.

Os materialistas desta corrente mantiveram uma intensa polêmica com os pensadores oficiais da época, que, invocando Descartes, sem sempre o compreenderem, pretendiam existir no homem certas ideias inatas, isto é, independentes da experiência. Na sua refutação desta teoria, os materialistas franceses apenas retomaram a doutrina de Locke, que, desde o fim do século XVII, demonstrara que não existem ideias inatas (no innate principles). Mas ao reexporem esta tese conferiram-lhe um aspecto mais sistemático; esclareceram os pontos em que um liberal inglês bem educado, Locke, não tinha querido tocar. Indo até às últimas consequências das suas ideias, foram sensualistas intrépidos, isto é, consideraram todas as funções psíquicas do homem como modificações da sensação. É inútil interrogarmo-nos aqui até que ponto, neste ou naquele caso, os seus argumentos permanecem válidos face à ciência actual.

É evidente que os materialistas franceses ignoravam muitos factos hoje do conhecimento de cada estudante: referimo-nos, antes de mais, às teorias físicas e químicas de Holbach, sempre mais ao corrente das ciências da Natureza do seu tempo. Pelo menos tiveram o mérito incontestável de conduzir o seu pensamento logicamente do ponto de vista da ciência na sua época; e é tudo o que se pode exigir de um pensador. Não é surpreendente que a ciência contemporânea tenha ultrapassado os materialistas franceses do século passado; mas o que importa é que os adversários desses filósofos se atrasavam em relação à ciência de então.

Os historiadores da filosofia costumam opor às concepções dos materialistas franceses as de Kant, a quem não se tem o direito de negar os conhecimentos científicos. Mas a esta oposição falta fundamento. Provar-se-ia facilmente que Kant e os materialistas franceses partiram do mesmo princípio, mas desenvolveram-se de maneiras diferentes, chegando assim a conclusões distintas, sob a ação de sociedades diversas em que viveram e pensaram. A ideia, sabemo-lo, será tida como paradoxal por aqueles que estão habituados a acreditar totalmente nas informações dos historiadores da filosofia; e não nos é lícito aqui apoiá-lo com uma argumentação circunstanciada. Mas fá-Io-emos de boa vontade, se os nossos adversários nisso mostrarem desejo.

Qualquer que ele seja, toda a gente sabe que os materialistas franceses consideravam o conjunto da atividade psíquica do homem como uma modificação da sensação (sensations transformées). E considerar a atividade psíquica deste ponto de vista é o mesmo que tomar a totalidade das representações dos conceitos e dos sentimentos como produzidos pela ação do meio exterior sobre o homem. É assim, de facto, que eles consideram a questão. Sem se cansarem, apaixonadamente e da maneira mais categórica, proclamaram que, com todas as suas ideias e todos os seus sentimentos, o homem é o resultado do meio, isto é, em primeiro lugar a Natureza e em segundo a sociedade.

L’ homme est tout éducation, assegura Helvétius, que entende por educação o conjunto da influência social. Esta concepção do homem como produto do meio ambiente fornece aos materialistas franceses o seu principal fundamento teórico para reclamar reformas.

Se o homem, de facto, depende do meio exterior, a quem deve todas as particularidades do seu carácter, deve-lhe também os seus defeitos; se se quer lutar contra estes, é, pois, necessário modificar em conformidade o meio ambiente, mais exatamente o ambiente social, já que a Natureza não faz o homem nem bom, nem mau. Colocai esse homem numa sociedade racional, isto é, em condições onde o instinto de conservação deixe de levar cada um a lutar contra todos, harmonizai os interesses do indivíduo com os de toda a sociedade, et Ia vertu aparecerá por si, mas, como uma pedra privada de ponto de apoio, cai por si própria. A virtude não se prega; prepara-se por uma ordenação racional de sociedade. Os materialistas franceses devem às ações conciliatórias dos conservadores e dos reacionários do último século que se persista em manter a sua moral em vez de uma moral de egoísmo. Com muito mais razão definiram-na como uma moral que se confunde inteiramente com a política.

A teoria segundo a qual a vida do espírito é um produto do meio ambiente tem por vezes levado os materialistas franceses a conclusões para eles mesmos inesperadas. Assim, têm pretendido, por exemplo, que as ideias do homem não têm propriamente nenhuma influência sobre o seu comportamento e que, por consequência, a difusão desta ou daquela ideia numa sociedade não poderia transformar a sua história no mínimo. lndicaremos mais adiante em que consiste, aqui, o seu erro. Reportemo-nos por um instante a um outro aspecto das suas concepções.

Se as ideias de um ser humano são determinadas pelo meio que o rodeia, as da Humanidade, no seu devir histórico, são-no pela evolução do meio social, pela história das sociedades. Se quiséssemos descrever «o progresso da razão» sem nos limitarmos à questão «como?» (como é que a razão se desenvolveu historicamente), mas pondo também o tão natural «porquê?» (porque é que esse desenvolvimento se realizou assim e não de outra forma), deveríamos começar pela história do meio, pela história da evolução das sociedades. O centro de gravidade deslocar-se-ia, assim, pelo menos de início, para a procura das leis da evolução social. Os materialistas franceses chegaram até este problema, mas, longe de o saberem resolver, nem sequer souberam pô-lo corretamente.

Logo que tiveram de tratar da evolução histórica da Humanidade, esquecendo a sua teoria sensualista do homem com H grande, e, de acordo com todos os «espíritos iluminados» do tempo, eles pretenderam que «c’est l’opinion qui gouverne le monde», isto é as sociedades humanas 3). É aí que reside a contradição inicial do materialismo do século XVIII. Nos raciocínios dos seus partidários ela dividiu-se numa série de contradições derivadas, de contradições secundárias comparáveis aos trocos de uma nota.

Tese: o homem com a totalidade das suas opiniões é o produto do meio, essencialmente do meio social. É a inevitável consequência do princípio de Locke: no início, não há ideias inatas.

Antítese: o meio, com a totalidade das suas propriedades, é o produto da opinião. É a inelutável consequência do princípio da filosofia da história dos materialistas franceses: c’ est l’opinion qui gouverne le monde.

Desta contradição inicial decorre um certo número de contradições derivadas; por exemplo:

Tese: o homem julga boas as formas sociais que lhe são úteis; julga más as que lhe são nocivas. L’opinion chez un peuple est toujours déterminée par un intérêt dominant, diz Suard 4). Isto nem sequer é um corolário da filosofia de Locke, mas um puro e simples plágio do seu texto: No innate practical principles… Virtue generally approved; not because innate, but because profitable… Good and Evil… are nothing but Pleasure or Pain, on that which occasions or procures Pleasure or Pain to us (Não há ideias práticas inatas… A virtude é geralmente aceite, não por ser inata, mas por ser vantajosa… O Bem e o Mal… mais não são que o Prazer ou a Dor, ou o que em nós é a musa ou a origem do Prazer ou da Dor.) 5).

Antítese: as formas em questão parecem úteis ou nocivas aos homens consoante o sistema das suas opiniões. Segundo o próprio Suard, cada povo, ne veut, n’aime, n’approuve que ce qu’il crait être utile. No fim de contas, tudo vai ter, portanto, uma vez mais, à opinião que governa o Mundo.

Tese: é um grande erro pensar que a moral religiosa, por exemplo, o preceito do amor pelo próximo, contribuiu, ainda que pouco, para melhorar os costumes. Preceitos semelhantes, como, além disso, as ideias em geral, não têm poder sobre o homem. Tudo depende do meio social, do estado da sociedade 6).

Antítese: a experiência histórica mostra-nos que les opinions sacrées furent la source véritable des maux du genre humain. E é perfeitamente concebível, pois se as opiniões em geral governam o Mundo, as falsas dirigem-no como tiranos sanguinários.

Seria fácil alongar esta lista de contradições que o materialismo francês legou a muitos dos nossos contemporâneos, «materialistas no sentido filosófico habitual». Mas isso seria supérfluo. Esclareçamos antes o carácter comum.

(…)

Detenhamo-nos sobre a contradição inicial: é o meio ambiente que determina as opiniões; são as opiniões que determinam o meio ambiente. Sobre isso anote-se o que Kant dizia nas suas antinomias: a tese é tão válida como a antítese. Não saberíamos, com efeito, pôr em dúvida que o meio social determina as opiniões. E é não menos indubitável que nenhum povo se acomodará numa ordem social contrária à totalidade das suas opiniões, que se insurgirá contra esta ordem e a remodelará à sua maneira. Deve-se, portanto, reconhecer também que a opinião governa o Mundo. Mas como é que duas proposições verdadeiras em si se podem contradizer? A questão explica-se muito facilmente. Elas só se contradizem porque nós as consideramos sob um ponto de vista errado: deste prisma, parece – e deve absolutamente parecer – que se a tese é verdadeira, a antítese é falsa, e vice-versa. Encontre-se o ponto de vista correcto e a contradição desaparecerá, cada uma das proposições que nos embaraçavam revestir-se-á de um aspecto novo: descobrir-se-á que cada uma completa a outra, mais exactamente, condiciona-a, sem nunca a excluir, que se esta proposição era falsa, a outra sê-lo-ia também, ainda que ela nos tenha à primeira vista parecido antagónica.

Como encontrar este ponto de vista correto?

Tomemos um exemplo. Disse-se frequentemente, sobretudo no século XVIII, que o regime político de um povo está condicionado pelos seus costumes, o que é perfeitamente correto. Quando os antigos costumes republicanos dos Romanos desapareceram a república cedeu lugar à monarquia. Mas assegurou-se não menos vezes, por outro lado, que os costumes de um povo são condicionados pelo seu regime político. E isto também não pode ser posto em causa. Como, pois, com efeito, poderiam os Romanos do tempo de. Heliogábalo ter costumes republicanos? Não é claro, até à evidência, que os costumes dos Romanos do Império deviam constituir algo de contraditório em relação aos antigos costumes republicanos? Desde logo chegamos à conclusão de que o regime está condicionado pelos costumes e que os costumes estão-no pelo regime. Mas esta conclusão é contraditória. Sem dúvida alcançámo-la porque uma das duas proposições era falsa. Qual? Mesmo que se procure até ao esgotamento, não se encontrara erro nem na primeira nem na segunda; uma e outra são perfeitas, já que, realmente, os costumes de um povo agem sobre o seu regime político, e neste sentido constituem a causa, ainda que, por outro lado, eles estejam condicionados por este regime do qual, neste sentido, parecem ser o efeito. Onde procurar então saída? Em questões deste género contentamo-nos normalmente em descobrir uma interacção: os costumes influem sobre a constituição; a constituição sobre os costumes; tudo se torna claro como a luz do dia; e os que de modo nenhum se satisfazem com esta limpidez dão prova da mais condenável tendência para a estreiteza de espírito. É assim, pelo menos, que raciocina a quase totalidade dos nossos intelectuais. Eles encaram a vida social sob o ângulo da interação: cada um dos aspectos desta vida age sobre todos os outros e sofre, por seu lado, a ação. É a única maneira de ver digna de um «sociólogo» reflectido; quanto aos que, à maneira dos marxistas, procuram descobrir causas mais profundas para a evolução social não se dão, simplesmente, conta da sua complexidade. Os filósofos do século XVIII sentiam-se também inclinados para este ponto de vista quando sentiam a necessidade de pôr ordem nas suas concepções da vida das sociedades e de resolver as contradições que os oprimiam. Mesmo os espíritos mais sistemáticos de entre eles (não falamos de Rousseau, que, no fundo, não tem nada a ver com os filósofos) não iam mais longe. É no ponto de vista da interacção que se detém, por exemplo, Montesquieu em trabalhos tão célebres como De la Grandeur et de Ia Décadence des Romains (Considerações sobre as Causas da Grandeza e da Decadência dos Romanos, 1734) ou L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis) 7). O ponto de vista é certamente correto: há incontestavelmente interação entre todos os aspectos da vida social. Infelizmente, este ponto de vista correcto aclara muito pouco, pela simples razão de não fornecer nenhuma indicação quanto à origem das forças que exercem esta interação. Se o regime político pressupõe os costumes sobre os quais age, não é certamente a ele que estes devem a sua aparição. E a mesma observação vale para os costumes: se eles pressupõem o regime sobre o qual agem não foram certamente eles que o criariam. Para sair deste labirinto devemos encontrar o fator histórico que produziu ao mesmo tempo as tradições de um determinado povo e o seu regime político, criando simultaneamente a possibilidade da sua interação. Se descobrirmos este factor, encontraremos o ponto de vista correcto, objecto da nossa procura, e poderemos então resolver sem nenhuma dificuldade a antinomia que nos embaraça.

Aplicada a contradição inicial do materialismo francês, eis o que ela significa: os materialistas franceses enganavam-se redondamente, já que, contradizendo a sua concepção habitual da história, eles entendiam que as ideias não são nada, visto que o meio ambiente seria tudo; mas não se encontra menor erro na sua concepção habitual da história (c’est l’opinion qui gouverne le monde), que faz da opinião a causa principal, fundamental, da existência de todo o meio social determinado. Há, sem dúvida nenhuma, interação entre o conceito e o meio. Mas uma análise científica não pode limitar-se a reconhecer esta interação, visto que não nos explica os fenómenos sociais. Para compreender a história da Humanidade – no caso presente, por um lado, a história das suas opiniões e, por outro, a história das sociedades que ela conheceu ao longo da sua evolução – é preciso ultrapassar o ponto de vista da interacção, é preciso descobrir, se isso é possível, o factor que determina ao mesmo tempo a evolução do meio social e a das opiniões. Ele incumbia às ciências sociais do século XIX a descoberta deste factor.

É a opinião que governa o Mundo. Mas ela não permanece invariável. Que é que preside à sua mudança? «A difusão das luzes», respondia La Mothe Le Vayer no século XVII. É a expressão mais abstrata e mais superficial da ideia de poder universal da opinião. Os filósofos do século XVIII, nisso, mantêm-se inabaláveis, completando-a por vezes com incapacidades melancólicas sobre o destino, infelizmente pouco seguro, das luzes. Mas já se realça de entre os seus melhores espíritos a consciência do que há de insuficiente numa tal concepção. Helvetius indica que o progresso dos conhecimentos está submetido ao das leis e que, por consequência, há causas ocultas, desconhecidas, das quais depende. Ele faz mesmo uma tentativa altamente interessante, e que ainda não se apreciou no seu verdadeiro mérito, para explicar uma evolução social e intelectual da Humanidade pelas suas necessidades materiais. Mas esta tentativa salda-se, finalmente, num insucesso. E, por muitas razões, não podia ser de outra forma. Pelo menos permaneceria como uma espécie de legado testamentário para os pensadores do século seguinte que tivessem querido prosseguir o trabalho dos materialistas franceses.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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