A imprensa da burguesia, que passou os últimos anos assustando a população com o espectro de um golpe de Estado, levantou-se em bloco desde que o presidente Lula usou o mesmo termo para referir-se à deposição de Dilma Rousseff. A turma que engendrou a façanha em 2016 – com STF, com tudo – e que se arvora em defensora contumaz da “democracia” não admite ser equiparada aos “terroristas” apoiadores de Bolsonaro. A palavra “golpe” é problemática para os democratas de araque porque põe às claras a ruptura das regras do “jogo democrático” que tanto dizem querer preservar.
O colunista Camilo Aggio, da revista Carta Capital, apresentado como professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas, lembra-nos em detalhes o momento em que o próprio protagonista do episódio, Michel Temer, usou a palavrinha capciosa para descrevê-lo:
Foi em 16 de setembro de 2019, no programa Roda Viva da TV Cultura, que Michel Temer disse: “Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”. Na plateia, espantava-se o jornalista Ricardo Noblat, um dos maiores entusiastas da armação golpista e desgraçada.
Segundo esse professor, no entanto, mesmo tendo sido golpe, essa “velha” questão não deveria ser desenterrada porque não seria estratégico no ambiente virtual, donde a conclusão de que o governo Lula seria “analógico” num mundo “digital”. Independentemente das explicações do especialista, o fato a considerar é que mesmo as publicações consideradas mais à esquerda, ainda que por caminhos diversos, acabam fazendo coro com a burguesia.
Na Folha de São Paulo, a coisa é bem mais explícita. Os colunistas mais bem pagos agem como uma espécie de orquestra: cada um a seu modo discute o tema sob o mesmo diapasão, sem nenhuma nota dissonante. Um deles, aliás, escreveu um texto intitulado “Língua livre”, que, a julgar pelo primeiro parágrafo, parecia ser mais uma das frequentes e já repetitivas críticas aos gramáticos “prescricionistas” [sic], que tentam “aguilhoar [a língua] a regras, mas [cuja] autoridade não vai muito além das provas de português”.
Depois de chutar cachorro morto – afinal, gramáticos e professores de português estão em baixa hoje, vistos como fascistas, nacionalistas no pior sentido, conservadores, retrógrados, eurocêntricos etc. – e de afirmar que “não existe erro de português”, o articulista mostra que seus dotes de linguista se encerram aí mesmo, coroando o senso comum. Sua verdadeira intenção era cobrar do presidente Lula que chamasse de impeachment o golpe de 2016 – e o arrazoado sobre linguística, além do título do texto, foi uma tentativa de usar o dicionário para tratar uma questão política como se fosse uma questão semântica.
Do alto de sua arrogância, afetando intelectualidade, o jornalista joga no mesmo balaio o uso dos termos “golpe” e “genocida” e a linguagem neutra, que seriam as liberdades linguísticas a que se dão os “petistas renitentes”. Como se vê, o identitarismo da Folha não passa de hipocrisia – desde que a primeira-dama do PT decidiu usar “todos, todas e todes”, foi liberada a “homofobia” no jornal, ou seja, linguagem neutra passou a ser bobagem, modismo etc. Não que sejamos ardorosos defensores dessa linguagem, que, por outros motivos, merece nossa crítica, mas, a bem da coerência, a turma da Folha deveria adotar as idiossincrasias linguísticas dessa política que tanto defende quando lhe interessa posar de liberal e moderna.
Fato é que qualquer coisa serve para atacar o governo do PT. Pouco importa quantos de seus colunistas já tenham chamado Bolsonaro de “genocida” quando era preciso tratá-lo como espantalho. Ao que tudo indica, essa fase também já passou. O jornal porta-voz da burguesia não parece sinceramente interessado em enterrar o bolsonarismo, que, a propósito, não passa de consequência de uma forte campanha antipetista mobilizada pela imprensa como um todo para justificar o golpe, tratado como impeachment, ante a opinião pública. O aspecto jurídico que o articulista defende ser definidor dos termos do que ele considera ser “o bom debate”, como se sabe, é uma das facetas do golpe.
Foi o cientista político André Singer, se não nos falha a memória, quem melhor resolveu a questão semântica ao dizer o óbvio: “o impeachment foi um golpe”. Afinal, houve impeachment: todos estamos lembrados daquela votação pela deposição de Dilma Rousseff em que os ilustres parlamentares, indignados com as pedaladas fiscais, derrubaram o governo dedicando o voto à mãe, à esposa, aos filhos ou mesmo ao cachorro. Um deles, não nos esqueçamos, dedicou o voto ao torturador Brilhante Ustra, “o terror de Dilma Rousseff”, rememorando os tempos da ditadura militar (ou seria da “revolução de 1964”?), e, após o serviço sujo do golpista Temer, assumiu a presidência da República, eleito pelo voto popular num clima de perseguição política ao PT, Operação Lava Jato, prisão de Lula, tudo patrocinado pela imprensa democrática do país. Além disso, como reconhece o próprio articulista da Folha, formalmente houve impeachment, tendo faltado apenas um detalhe: o crime de responsabilidade. De última hora, surgiu a tese das tais pedaladas fiscais, o pormenor que distinguiu esse processo daquele do Kafka.
Foi também nas páginas da imprensa da burguesia que surgiu a palavra “petralha”, inventada por um desses colunistas, que hoje se diz arrependido e faz média com a imprensa progressista. Seria bom lembrar ao articulista da Folha que arguiu a inutilidade dos gramáticos prescritivistas o fato de que foi um deles, conhecido autor de manuais que ensinam a “não errar mais” no português, quem deu ao tal neologismo um lugar no dicionário. A considerar a definição de “petralha”, cujo coletivo seria “petralhada”, inserida nesse livro, o gramático certamente compartilha das ideias do autor do artigo da Folha, mas, para o nosso alívio, sua autoridade é próxima de zero.
Finalmente, a questão, por óbvio, não é semântica, mas política, como também é política a discussão sobre “fake news” – tanto é que o MBL quer acusar Lula de promover desinformação ao chamar o golpe de golpe. Lula está certo ao dar nome aos bois. Está mais do que na hora de identificar os iinimigos do povo. A burguesia deu um golpe e ponto-final.