Fantasias identitárias II

Uma nova invenção: os negros eram monarquistas

A Proclamação da República foi ruim para os negros?

Existe uma verdadeira epidemia nos meios acadêmicos oficiais. Uma verdadeira doença que transforma o estudo sistemático da história, baseado fundamentalmente nos fatos, em uma história mitológica de um Brasil mitológico. A interpretação distorcida dos acontecimentos ou, no pior dos casos, a mera falsificação deles, tornou-se a regra nos escritórios das universidades brasileiras. E por quê? Porque quem impulsiona essa política é a própria burguesia, para quem tem dúvidas, basta acompanhar diariamente os principais jornais e revistas da imprensa capitalista: para cada data comemorativa da história do Brasil há espaço para uma avacalhação completa.

A avacalhação vem escondida sob a autoridade do diploma, aquele papel timbrado que a burocracia universitária fornece para quem cumpre algumas obrigações. Pretensos historiadores, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, filósofos são apresentados como grandes autoridades no assunto. E se eles, diplomados, disseram, os mortais que aceitem de cabeça baixa.

O ano de 2022 marcou muitas datas importantes da história do Brasil. Centenário da Semana de Arte Moderna, da Revolta do Forte de Copacabana, da fundação do PCB, bicentenário da Independência, todos esses acontecimentos e mais alguns foram alvos desses pretensos intérpretes da história do Brasil. Nessa terça-feira, dia 15, embora não como data redonda, comemorou-se a Proclamação da República. Foi o suficiente para mais avacalhação.

O UOL/Folha de S. Paulo apresentou uma pequena notícia falando sobre os negros na Proclamação da República. “Sangue, massacre e liberdade; por que negros receavam a República?” Vemos aqui que mais uma vez o identitarismo é usado para distorcer a história do Brasil. A matéria afirma o seguinte:

“A Proclamação da República, em 1889 (…) costuma ser relatada como um momento histórico de liberdade e independência para o país, conduzido sobretudo pelos militares, as elites e os abolicionistas”.

Segundo o Uol, a Proclamação, portanto, não teria sido um momento de liberdade e independência, porque isso é o que “se costuma relatar”. Vejam aqui o modo intrigante de abordar determinado fato histórico do País. Se considerarmos que o resultado da República, colocado em dúvida pela matéria, não foi um momento de liberdade e independência, podemos concluir que talvez fosse melhor se o Brasil tivesse se mantido no Império. Um leitor poderia muito bem chegar a essa conclusão: se não foi positivo, então…

Analisar criticamente a história não significa fazer uma intriga contra ela. A Proclamação da República, assim como todos os grandes acontecimentos, foi cheia de contradições. Mas o problema seria saber se ela foi ou não um progresso relativo naquele momento. Olhando para o presente não deveria haver dúvida de que foi positivo, a República abriu a possibilidade para um regime relativamente mais democrático e principalmente mais popular do que a monarquia. Isso não significa que seja perfeito – muito longe disso. Mas o simples fato de que uma volta ao Império hoje seria um caminho ultra reacionário já deveria ser a resposta para qualquer dúvida.

Não adianta jogar lama num acontecimento histórico sem ter em vista o processo histórico concreto.

A explicação para a duvidosa Proclamação da República vem logo abaixo na matéria do Uol:

“Os eventos em torno da instauração da República demonstram uma sociedade dividida entre negros e brancos, o que vai marcar a sociedade cada vez mais nos anos seguintes. Um dos exemplos é o ‘Massacre dos Libertos’, no Maranhão, ocorrido em 17 de novembro, quando um grupo de cerca de 3 mil pessoas negras realizaram um protesto contra o possível novo regime por receio de que ele restaurasse a escravidão no país e extinguisse, assim, os direitos civis recém conquistados. Em resposta, uma tropa de soldados atirou contra a multidão, deixando vários mortos e feridos.”

Quem explica isso é o sociólogo Matheus Gato de Jesus, autor de “O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e República no Brasil” , que afirma, segundo o Uol, que a Proclamação “não foi um capítulo harmonioso da história do país, sobretudo para as populações negras e recém libertas do regime de escravidão, em 13 de maio de 1888”.

É preciso uma advertência: não vamos aqui polemizar com o livro em questão, mas com as ideias apresentadas pelo Uol.

Dizer que um período de mudança no regime político não foi harmonioso é namorar o óbvio. Não foi harmonioso nem mesmo para a Oligarquia que tomou o poder, não só para os negros. A Proclamação abriu um dos períodos mais turbulentos da história do Brasil, com inúmeras revoltas.

O episódio no Maranhão sem dúvida está inserido nesse período turbulento. Dizer que a “sociedade estava dividida entre negros e brancos” não é correto e serve para confundir a questão. Falar que isso ficará ainda mais marcado nos anos posteriores é uma barbaridade. Se a divisão entre brancos e negros é uma realidade, ela só pode ser entendida inserida na divisão entre as classes. Se nos anos seguintes os conflitos se intensificaram, é um reflexo da mudança no regime político.

O que chama a atenção, no entanto, é a interpretação dada na matéria do Uol. É como se a República tivesse sido tão ruim para os negros que eles se revoltaram. Isso é uma falsificação. O episódio no Maranhão não deve ser interpretado dessa maneira.

Segundo o autor, a República fez com que a sociedade ficasse cada vez mais dividida, nas décadas seguintes, entre negros e brancos, de forma a acentuar a desigualdade. Teria sido, segundo esse raciocínio, a escravidão ─ abolida somente um ano antes ─ melhor, portanto, para os negros?

O próprio artigo do Uol afirma que os abolicionistas foram importantes na Proclamação. E de fato foi assim. A Abolição da Escravatura foi antes de qualquer coisa um episódio da crise que viria a resultar na República.

Se houve negros que se apegaram ao Império iludidos com a assinatura da lei pela Princesa Isabel, isso não quer dizer que os negros em geral estavam contra a república ou mais ainda que a Proclamação foi ruim para os negros. Essa é a ideia que a matéria do Uol passa quando afirma os “negros receavam a República”.

É conhecida a criação da Guarda Negra, criada por negros para garantir a abolição da escravidão e que reconhecia o Império como o responsável pela abolição. Essa guarda agia com violência contra comícios republicanos. Isso, assim como a revolta no Maranhão, mostram um período turbulento e por isso muito confuso para os contemporâneos.

A análise e interpretação dos grandes acontecimentos devem ser baseados no sentido concreto que eles têm na história. Para os negros, a crise do regime que resultou na Proclamação acabou com a escravidão e isso abriu uma nova etapa nas condições de vida e na luta dos negros no Brasil. É isso que deve ser analisado, não as ideias, ou melhor dizendo, as supostas ideias que as pessoas tinham sobre si mesmas e os acontecimentos.

Esse é o tipo de coisa que tem um sentido reacionário. Apresentar a história como um grande amontoado de farsas e de acontecimentos negativos. É reacionário porque acaba por transformar o Brasil e o próprio povo brasileiro numa grande farsa. Uma pessoa consequente que acredita nisso deveria defender o retorno de tudo o que foi conquistado no Brasil, voltar ao império, quiçá até voltar a ser colônia de Portugal.

A tentativa de atribuir aos negros brasileiros um monarquismo revela bem o papel do identitarismo nessa política de falsificação da história.

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