Por certo que precisamos de propostas para a melhoria da atenção ao parto e a todos os fenômenos relacionados aos ciclos femininos, mas é necessário fugir do idealismo que, tal qual uma sereia sedutora, nos leva a crer em soluções parciais para problemas estruturais. É importante reconhecer que as ideias por si só são estéreis, incapazes de produzir as mudanças que pretendemos. Um exemplo clássico é de que as episiotomias (incisão no períneo) são inúteis e prejudiciais, um fato comprovado há mais de três décadas, e mesmo assim ela continua sendo usada indiscriminadamente em nosso meio, exatamente porque a mudança nestas atitudes sedimentadas pela cultura médica não se dá pelas ideias, mas pela confrontação e pela luta. Precisamos, portanto, de uma perspectiva materialista para o nascimento.
O mesmo ocorre com a ideia – bem estabelecida por estudos multicêntricos ocorridos há várias décadas – de que é essencial para a saúde coletiva interromper o abuso de cesarianas, assim como as centenas de outras intervenções indevidas que ocorrem no ambiente hospitalar do parto, reconhecidamente inúteis e perigosas para o binômio mãe-bebê. Portanto, a agenda – além de positiva – precisa ser propositiva, centrada nas lutas que garantam o protagonismo e que estabeleçam uma relação centrada na liberdade ampla e irrestrita de escolhas, respeitando amplamente os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e suas famílias. Mais importante ainda é entender que essa luta será conduzida pelas mulheres, legítimas condutoras do processo, contando com a valiosa ajuda dos profissionais de vanguarda da obstetrícia e da parteira.
Fora dessa perspectiva resta apenas o que se pode chamar de “reformismo obstétrico”, uma plataforma de propostas que se baseia na perspectiva da solução para os dilemas obstétricos através da simples proliferação de obstetras humanistas – profissionais mutantes e bizarros, fixados em sua perspectiva de respeito às evidências – que não passam de meia dúzia de ilhotas minúsculas em um oceano gigantesco de “mesmices” que apenas replicam o modelo anacrônico, personalista, intervencionista, misógino e centrado nos valores do capitalismo que caracteriza a assistência ao parto nos grandes centros do ocidente. Imaginar que a reforma estrutural da obstetrícia se dará sobre as mesmas diretrizes intervencionistas de hoje – mantendo os mesmos atores no comando – é uma ilusão que não podemos nos permitir.
A ruptura com o reformismo obstétrico – que pretende mudar a fachada para não transformar a estrutura – será a grande tarefa da nova geração de ativistas e cuidadores.
Por fim, uma curiosa constatação: no que se refere ao parto as mulheres são o sol, enquanto seus cuidadores são a lua. Aquelas produzem a energia e a luz feérica do nascimento enquanto estes refletem com humildade e respeito o brilho intenso que capturam do momento. Qualquer inversão destes papéis significa uma perversão significativa na essência desse evento, um eclipse que desfaz o brilho de um às custas da intromissão do outro.
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