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Na fronteira com o Donbass

Chegamos a Rostov, nos portões da guerra

Enviados especiais de Causa Operária se aproximam da zona de conflito mais intensa desde 2014 na Ucrânia

─ Eduardo Vasco, de Rostov do Don

O caderno onde faço minhas anotações está praticamente destruído. O havia deixado no bolso da minha calça para o rápido passeio que faríamos pelas ruas de Rostov do Don ─ a maior cidade russa próximo à fronteira com a Ucrânia, a apenas 182,6 km (3h de carro) de Mariupol.

Mas não imaginava que pegaríamos uma chuva que iria ensopar meus pés e molhar toda a minha calça. Foi uma breve caminhada com nosso guia improvisado, Andrei. Proveniente de Tashkent, no Uzbequistão, vive há um ano em Rostov. Antes, passara por Kazan, no Tatarstão. Foi ele quem nos recebera na noite anterior, quando chegamos por volta das 00h no hostel. O atendente não falava inglês e Andrei, com trajes militares, disse que seria o intérprete.

─ É apenas uma roupa que eu ganhei de um amigo, me conta, quando pergunto se ele é militar. Diz não ter relação nenhuma com a guerra (“mantenho distância”) e se desculpa por seu inglês “not so well”.

A distância entre Rostov e entre as cidades do Donbass (Donetsk e Lugansk) e também Mariupol é praticamente a mesma

Segundo a agência de notícias Interfax, 150 mil refugiados haviam chegado à região de Rostov até o início de março. No total, são quase 700 mil pessoas que fugiram da Ucrânia para a Rússia desde o início da operação militar especial, iniciada pelas forças armadas russas em 24 de fevereiro, de acordo com a TASS. Os grandes meios de comunicação internacionais preferem ignorar que há oito anos os russos e ucranianos do leste da Ucrânia são esmagados pelo exército do regime de Kiev e suas hordas nazistas, e têm basicamente duas alternativas: pegar em armas e lutar ao lado das milícias populares de Donetsk e Lugansk ou escapar do conflito para se proteger do outro lado da fronteira.

O governo russo tem dado todo o tipo de apoio aos refugiados. Os que procuram abrigo na Rússia recebem um auxílio de 10 mil rublos, moradia temporária em alojamentos com quartos e cozinha comunitária e alimentação. Eles estão espalhados por todo o Oblast de Rostov, na própria capital ou em cidades como Taganrog e Novocherkassk. Para entrar em contato com os refugiados que se encontram nesses centros, é preciso uma permissão especial do governo, porque jornalistas estrangeiros costumam manipular informações e entrevistas e distorcer a realidade do local, então o governo precisa de um controle mínimo.

A viagem de Moscou para Rostov durou 24 horas.

─ Não vão inventar de ir para o Donbass, estou falando sério. É muito perigoso ir para lá, nos alertou um de nossos anfitriões em Moscou. Rafael e eu nos despedimos dele e pegamos o Yandex Go direto para a estação de trem Vostochniy. O trem n° 49, vindo de São Petersburgo, chega às 22h49 de domingo (10), exatamente como constava no bilhete. Nosso vagão é o primeiro e nos alojamos na parte de cima de nossos respectivos beliches. Um vagão de 3° classe em que, apesar do desconforto, eu me sinto extremamente maravilhado: estou cruzando a Rússia de Norte a Sul, praticamente, em uma verdadeira aventura.

Só devo ter conseguido dormir no final da madrugada. Me mexia para lá e para cá, mas não havia espaço no beliche de 1,70 m de comprimento, 60 centímetros de largura e uns 70 de altura. Rafael, por sua vez, dormia muito bem, roncando horrores mas sem perder a disciplina que lhe é característica: as pernas perfeitamente alinhadas uma sobre a outra, o braço direito sobre a barriga com o punho cerrado na cintura, e o braço esquerdo descansando sobre a sua testa, quase em posição de “sentido!”.

Fui acordar apenas pelas duas da tarde e acabei perdendo uma cena que Rafael me mostrou depois: havia filmado um comboio com dezenas de tanques russos na ferrovia entre Lipetsk e Pridacha, preparando-se para entrar no front ou que haviam retornado do front. Em Moscou havíamos visto apenas alguns jovens de escolas militares uniformizados, ou pessoas avulsas com algum uniforme do exército ─ uns fazendo cosplay de soldados, outros realmente vinculados às forças armadas. Mas eram muito poucos. Aqui em Rostov, vimos dois homens fardados na saída da estação de trem e recebemos a informação de que em algumas localizações aqui da região as vias estão bloqueadas, não se pode entrar nem fotografar, devido a serem zonas de algum risco.

Pois, assim como o trem havia chegado pontualmente às 22h49 a Moscou, no dia seguinte ele chega pontualmente às 22h57 a Rostov do Don. Pegamos um taxi e o motorista, após nos deixar em nosso destino, sabendo que somos brasileiros, se despede dizendo “Russia and Brazil, friends!”. Nossos amigos do hostel também gostaram do fato de sermos brasileiros. Shota, um russo de origem armênia e georgiana ─ o que é visível em sua fisionomia, com barba e narigão ─ fala “Ronaldinho” e diz que é motorista de Yandex Go.

Quando dizemos que somos jornalistas da imprensa do Partido da Causa Operária, um partido comunista brasileiro, Andrei se surpreende. Mostro uma edição do nosso semanário, com o apoio à Rússia estampado na capa, e digo o que está escrito. Ele pede para o exemplar ficar com ele, no que obviamente é atendido. Parece que aos poucos foi se mostrando mais próximo politicamente da gente, dizendo-se inclusive comunista e fã de Fidel Castro ─ embora, segundo ele, o partido comunista russo não tenha posições boas, algo que eu já havia ouvido dos russos do Comitê de Cooperação com a América Latina.

Estamos na chuva gelada de Rostov, cidade onde era para estar fazendo sol e mais de 20°. Andrei nos diz que estamos em um bairro armênio. Aqui a infraestrutura é mais atrasada que a de Moscou, com muitas casas antigas e menos conservadas, com uma arquitetura bem diferente. Lembra um pouco cidades do interior de São Paulo, embora no centro já se pareça mais com bairros de Moscou. É a décima cidade mais populosa da Rússia, com cerca de 1,2 milhão de habitantes, sendo 90% russos com a maiores minorias de armênios (3,4%) e ucranianos (1,5%). Percebe-se, pelo pouco que andamos pela cidade até agora, uma diferença para os moscovitas ─ em sua maioria loiros de olhos azuis e com muitos originários das repúblicas da Ásia Central, como cazaques. Em Rostov há mais pessoas morenas e menos asiáticos, talvez por estar relativamente próxima dos povos do Cáucaso (armênios, georgianos, azeris) e também pelo clima ser mais ameno, o que influencia na tonalidade da cor do cabelo, dos olhos e da pele.

Em nosso rápido passeio com Andrei pelos arredores do bairro armênio podemos passar pelo Parque Cherevitchkin, em homenagem a Viktor Cherevitchkin, um pioneiro da URSS assassinado pelos invasores nazistas quando tinha apenas 16 anos. Rostov foi invadida e capturada pela Wermacht e as SS em 20 de novembro de 1941 e logo em seguida os alemães estabeleceram que todas as pombas da cidade deveriam ser exterminadas. No dia 28 de novembro, soldados alemães descobriram Cherevitchkin soltando pombas e o executaram. A foto do pequeno Vita segurando uma pomba, já morto, foi utilizada como prova das atrocidades nazistas no Tribunal de Nuremberg anos depois. Poucas horas após a sua morte, o Exército Vermelho libertou Rostov, vingando o adolescente, as pombas e todos os moradores da cidade que caíram sob o terror nazista.

Não tem como não relacionar esse episódio ocorrido há mais de 80 anos com os acontecimentos atuais, dentro dos quais Rostov volta a ser um local importante ─ dessa vez, é a cidade que abriga aqueles que buscam refúgio dos nazistas. Uma cidade onde os bandidos de extrema-direita jamais voltarão a pisar e onde as vítimas encontram proteção. Inclusive, Vladimir Putin parece se inspirar no Exército Vermelho: em uma rua próxima vemos três ônibus da Aeroflot com o logotipo do 9 de Maio, o Dia da Vitória, quando a URSS derrotou oficialmente Hitler. Estaria o novo dia da vitória contra os nazistas realmente próximo? Rafael acredita que sim: Putin quer comemorar o 9 de Maio com uma estrondosa parada militar na Praça Vermelha, celebrando a derrota dos nazistas de ontem e também os de hoje.

Ainda no mesmo parque, encontramos duas outras homenagens dos tempos soviéticos, uma a todas as crianças que tombaram na invasão de Rostov, onde está escrito “Glória aos jovens heróis” e outra com o rosto de Lênin em uma estrela vermelha, igualzinho a de pingentes da época da URSS.

Nos despedimos de Andrei, que vai na barbearia, e voltamos correndo para o hostel, já encharcados em nosso primeiro dia perto do teatro de guerra.

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