A categoria médica, uma casta que se recusa à atuação pública?
Na primeira parte desta reportagem apresentamos como o Conselho Federal de Medicina (CFM) atuou diretamente, conjuntamente, à imprensa e parlamentares do período em que Dilma Rousseff esteve na Presidência da República, para demonizar o Revalida, especialmente a partir do Programa Mais Médicos.
Na segunda parte demonstraremos os efeitos do Golpe de Estado e como o CFM pretende manter o modelo burguês e controle classista e corporativo da profissão, em outras palavras, a reprodução de classes e suas contradições mais agudas (outro ângulo para o mesmo problema é dado por Outras Palavras. Para isto, é necessário apresentar alguns elementos de como o CFM opera para fins corporativos, completamente desvinculados aos interesses da população brasileira.
Além da leitura da primeira parte desta série, também não é demais reforçar que o CFM se posicionou contra o Programa Mais Médicos, que visava a interiorização dos médicos no interior do país, já que a maior parte dos quadros médicos do país preferem atuar nas capitais e cidades médias, as mais ricas onde pode-se abrir clínicas particulares, obter lucros, explorar força de trabalho etc.
Em 1946, o geógrafo e médico Josué de Castro, alertou quanto ao problema da fome e a necessidade de tratar deste tema, associado ao atendimento da saúde pública, duas questões correlatas, que são um “tabu”, nas palavras do autor, e que compõe parte do medo da burguesia, não no sentido de suas políticas contra a fome, mas, o medo de classe. Em Congresso da FAO, Castro proferiu a famosa frase: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo do que não come.”
Na obra “Geografia da Fome”, o médico Josué de Castro afirmou: “Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos — dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos — e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a dura verdade é que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos.”
Esse problema permanece no Brasil e a categoria médica é uma das responsáveis diretas, não por acaso, e podemos exemplificar esse problema na própria atuação do lobby médico com um dos governos mais reacionários que já atuou no país, o Governo Bolsonaro et caterva. A fim de não realizarmos uma abordagem “sociologizante”, precisamos apresentar as questões das fraudes no Revalida que continuam e podem ter se aprofundado, conforme indícios apontados. Se, no passado, o Revalida foi severamente combatido pela Polícia Federal, o que entendemos que foi um equívoco, pois tirou a autonomia do INEP, porém, a sanha da burguesia por burlar a burocracia estatal vai além.
De acordo com Medicina S/A, uma das operações que entraram em curso, pela Polícia Federal, foi a Operação Vagatomia, deflagrada em São Paulo, dando sequência em investigações “que apuraram a existência de um esquema criminoso de fraudes em processos seletivos para ingresso em cursos universitários”. Além dessa operação, uma série de indícios de fraudes podem ser visualizadas no Jusbrasil, e o número chama a atenção em termos de volume e está bastante fragmentado em diversos segmentos em quadrilhas elocupretadas, supostamente com agentes públicos, o que demandaria uma análise processual para cada caso, pois é bastante evidente que a categoria médica defende o Revalida, o que parece ser uma defesa da população, na verdade é um corporativismo.
A AMB, Associação Médica Brasileira, que subscreveu praticamente toda política de Bolsonaro (conforme vídeo disposto neste link, como parte da demonstração de interesses), apenas se posicionou contrária ao Revalida Light, da MP 890 de 2019.
O Revalida Light atenderia a demanda das universidades privadas, mas os médicos, que foram contrários ao uso emergencial de recursos públicos para suprir a demanda de médicos, acreditam que o melhor mesmo é a Revalida centralizado por universidade pública. Contudo, nenhuma palavra da categoria sobre a necessidade de se ampliar o número de universidades e cursos de medicina públicos, a fim de atender a demanda nacional. Nada, nenhuma palavra.
Contextualizando o Revalida Light
Após o Golpe de Estado de 2016, apoiado por diversos setores de categorias de médicos (que parabenizou efusivamente a vitória de Bolsonaro), pelo grau de corporativismo, elitismo e em virtude do grande poder econômico que possuem, além de serem ideologicamente contra a presença de médicos cubanos no Brasil, que eram fundamentais em vista da escassez de médicos no interior. O próprio CFM mapeou a escassez de médicos no interior do país, muito embora a escala do mapa não esteja adequada e também não dá conta de projetar a escassez também nas capitais e cidades médias, embora a situação de dificuldade ficou ainda mais pública e notória com a Pandemia da Covid-19.
Em material de campanha sobre a necessidade de cobertura do Mais Médicos também deixava clara a finalidade emergencial, à época.
Um mapeamento acadêmico utilizando sofware específico de cartografia também demonstra o problema:
https://www.scielo.br/j/icse/a/KjzqwvYhM4NRvdDCyRJHvkD/?lang=pt#
O golpe de Estado levou o país a um impasse e dificuldade na aplicação do exame Revalida. Havia a pressão para facilitar o acesso de brasileiros, críticas à atuação de cubanos e médicos de outros países em território brasileiro, além de aprofundamento da destruição do orçamento público.
Em Audiência Pública que investiga os motivos dos problemas na aplicação do Revalida entre 2017 e 2021, contextualiza que, aplicado desde 2011, o Revalida subsidia a revalidação, no Brasil, de diplomas de graduação em medicina obtidos no exterior. O exame é composto por uma etapa teórica e outra prática que abordam clínica médica, cirurgia, ginecologia e obstetrícia, pediatria e medicina da família e comunidade (saúde coletiva). Entre 2017 e 2019, o exame não foi aplicado. Segundo Luís Filipe Grochocki, houve problemas com licitações no período. Para evitar esse tipo de situação é que parlamentares aprovaram a Lei do Revalida (Fonte: Agência Câmara de Notícias).
Além disso, Jair Bolsonaro (ex-PSL, atual PL), a segunda opção da burguesia, depois de Geraldo Alckmin (PSDB), para ser o presidente do Brasil, vinha em forte ritmo de campanha. Em discurso de campanha, em 2018, no Aeroporto de Presidente Prudente, Bolsonaro afirmou: “Nós juntos temos como fazer o Brasil melhor para todos e não para grupelhos que se apoderaram do poder e [há] mais de 20 anos nos assaltam e cada vez mais tendo levado para um caminho que nós não queremos. Vamos botar um ponto final do Foro de São Paulo. Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”.
Após discurso de retaliação aos médicos cubanos, Bolsonaro, já eleito, mas não empossado, prometeu acabar com o Revalida para os brasileiros e procurou atenuar seu discurso no plano de governo. Bolsonaro afirmou que “nossos irmãos cubanos serão libertados”, e que suas famílias poderiam imigrar para o Brasil desde que os profissionais sejam aprovados no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida). Os médicos cubanos passariam a receber integralmente o valor pago pelo governo brasileiro e, atualmente, é redirecionado, via convênio com a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), para o governo de Cuba. Bolsonaro, em contrapartida, prometeu que não teria Revalida para brasileiros.
Quanto ao Revalida Light da Medida Provisória, caiu após pressão classista que continuou apoiando Bolsonaro, mas com o fortalecimento do Revalida. Embora os médicos critiquem abertamente o setor público como corrupto, denunciando: “FRAUDES NA REVALIDAÇÃO DE DIPLOMAS SÃO DESTAQUE NA MÍDIA. Os processos de revalidação de diplomas devem ser pautados pela ética e seriedade. Afinal, eles comprovam que médicos formados no exterior, sejam brasileiros ou não, estão aptos para atuarem com qualidade no Brasil. Mas o que temos visto ganhar força no País é um esquema ilícito que frauda a revalidação. A grave denúncia feita pela AMB sobre o assunto foi tema de uma reportagem do portal Gazeta Digital. Na entrevista, o presidente Lincoln Ferreira explicou que as irregularidades funcionam por meio de universidades públicas, como a UFMT, que terceirizam a oferta de cursos de estudos complementares para faculdades particulares, que em alguns casos nem possuem curso de medicina. Empresas intermediadoras chegam a cobrar R$130 mil por uma vaga. Confira: https://www.gazetadigital.com.br/…/associao…/596101.”
As primeiras denúncias de fraude eram para desviar a atenção e seguia o modelo da “Caixa Preta do BNDES”. Já no início do governo foram feitas as primeiras investigações que levaram a pouco resultado prático, a não ser a lista de fraudes que apresentamos anteriormente, e que tem relação com processos cíveis e criminais estabelecidas em investigações convencionais das polícias estaduais e Ministérios Públicos.
As questões e lacunas da política dos médicos e seu conluio com a burguesia
Ao mesmo tempo que entidades como CFM e AMB atacam, ao modo da classe média, e da burguesia, os sistemas públicos, convocando diligências a um caro sistema de Revalidação de diplomas para os filhos da classe média (alta, média e baixa) e profissionais que buscam o sonho de serem médicos em outros países, essas entidades cobram um saturado sistema universitário público saturado inclusive por políticas apoiadas por eles mesmos. Essas cobranças denotam até certo sarcasmo, pois cobram a permanente vigilância das polícias às universidades federais, mas não apoiam a ampliação do sistema universitário público.
Fica o questionamento ao CFM, AMB e Governo. Se as universidades particulares são ineficientes para aplicação do Revalida, por que essas universidades estão autorizadas a funcionar em nome do MEC? Por que o sistema público de ensino superior brasileiro não é ampliado a ponto de atender a demanda? Duas questões para que o leitor também possa ajudar a questionar o lobby corporativo da classe médica e sua atuação política que não favorece o atendimento mais amplo, para dizer o mínimo e nao expor ainda mais problemas efetivos em que a categoria está envolvida em termos de auxiliar, assim como os cubanos, na melhoria das condições de vida do país, como pretendeu Josué de Castro.
Elitismo