O debate sobre o financiamento imperialista a amplos setores da esquerda brasileira parece estar, finalmente, começando a tomar suas devidas proporções. Porque é um escândalo colossal e isso deve ser discutido minuciosamente entre os trabalhadores. As organizações que dizem defender os seus interesses não devem, de modo algum, se dispor a atuar como prestadoras de serviço de seus maiores inimigos.
Alguns intelectuais da esquerda têm se posicionado sobre o assunto. Infelizmente, a maioria tem não apenas compactuado com tão criminosa prática, como também atacado aqueles que a denunciam. O que, felizmente, por outro lado, joga luz sobre posições que até então estavam escondidas de seus seguidores. É o caso do petista Breno Altman.
Na última sexta-feira (04), o editor do portal Opera Mundi naturalizou o fato de dirigentes, intelectuais e até organizações de esquerda se corromperem para a burguesia internacional. Segundo ele, “todos os partidos de esquerda já receberem (sic.) recursos de ‘fundações burguesas’, daqui ou de fora. Ou essa ‘denúncia’ já foi feita a todos”.
Causa espécie alguém que se diz marxista e mesmo revolucionário ridicularizar as denúncias em questão, feitas a partir de uma posição classista que ─ seguindo a tradição de Marx até os revolucionários do século XX ─ considera um problema sério a caracterização das instituições criadas e controladas pela burguesia como sendo, por isso mesmo, burguesas.
Essas denúncias já terem sido feitas antes (embora não com tanto embasamento como agora) não diminui e muito menos anula seu conteúdo. Se “todos os partidos da esquerda” já receberam recursos de fundações capitalistas, por que então recusar agora esses recursos? Já é algo tradicional, normal, natural. É isso o que pensa Altman. Bom, devemos aqui fazer uma correção ao jornalista: o PCO, pelo menos, jamais foi beneficiado por financiamento de tais “fundações burguesas”. O próprio estatuto do Partido o proíbe. Se não, como poderíamos nos dirigir à classe operária, chamando à sua organização independente da burguesia, sendo nós mesmos dependentes dessa mesma burguesia?
Um dos princípios fundamentais de uma organização que se diz defender os interesses dos trabalhadores é a manutenção, custe o que custar, de sua independência de classe. Recentemente, para justificar seu emprego assalariado no IREE e na Folha de S.Paulo, Guilherme Boulos (alvo das denúncias deste diário, que originaram o debate em questão) se comparou com um trabalhador qualquer que vende sua força de trabalho ao capitalista a fim de garantir sua sobrevivência e a de sua família. Afinal, argumentou o psolista, vivemos no capitalismo. E o capitalismo é o regime do trabalho assalariado.
Essa é uma comparação desonesta, uma vez que o trabalhador comum é obrigado a se submeter aos interesses do patrão porque o único que tem a vender é sua força de trabalho, a qual troca por um salário. O pequeno-burguês, por sua vez, como Boulos, não precisa disso. Tem uma vida muito menos penosa. Tanto é que Boulos é professor de uma das mais prestigiadas universidades do País, a PUC-SP. Será que o líder do MTST ─ cuja vida, como vimos, é muito diferente daquela da base de seu movimento ─ realmente precisa se submeter ao IREE, instituto dirigido por empresários, militares e políticos golpistas, ligado aos órgãos do governo dos EUA (como o NED), e à Folha, um dos principais jornais da burguesia brasileira? Porque, como lembrou Boulos, vivemos no capitalismo. Ou seja, o regime do trabalho assalariado. Isto é, o regime da submissão de quem recebe um salário por aquele que paga o salário. O trabalhador é dependente de seu patrão. Somente nesse sentido Boulos está com a razão ao se comparar com um trabalhador comum: ele também é dependente de seus patrões. Mas enquanto um operário vende sua força de trabalho, um intelectual (mesmo que incrivelmente medíocre como ele) vende sua alma, ou seja, seus pensamentos, seu intelecto, sua política ─ principalmente se ele é alguém pertencente, e no caso de Boulos, um dirigente de, um partido político.
Quando uma organização de esquerda aceita ser financiada por uma instituição da burguesia ─ como é o caso da Fundação Ford, por exemplo ─, ela está colocando a sua “força de trabalho” (no caso, as suas habilidades políticas) a serviço dessa instituição. Presta-se um serviço político. A Fundação Ford financia diversos projetos apresentados como “humanitários”, “ecológicos”, “feministas”, “afirmativos” etc. Esses projetos são implementados pelos captadores de recursos, como ONGs (que atuam em parceria com determinado militante ou organização de esquerda) ou organizações de esquerda, diretamente. Quem escolhe os projetos são essas fundações. Obviamente, nenhum desses projetos terá o intuito de expropriar a burguesia, estatizar a economia, fazer a reforma agrária ou expulsar as forças estrangeiras.
Por outro lado, como tática de infiltração, esses projetos não buscam entrar em contradição com o programa político dessas organizações de esquerda. Como mostrou Francis Stonor Saunders no livro “Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura” (disponível em pdf. logo abaixo), a ideia desses financiamentos (por meio de instituições de fachada da CIA, como a Fundação Ford, citada no livro) é incentivar uma política já existente na esquerda, aquela política que não incomoda os grandes interesses da burguesia e do imperialismo. Não se inaugura uma nova política, apenas se impulsiona e promove essa política já existente, uma política reformista rebaixada, uma política extremamente moderada, cujo horizonte seria uma espécie de “humanização do capitalismo”. O objetivo? Reforçar essa política até torná-la hegemônica dentro da esquerda, a fim de contrapô-la à política revolucionária e anti-imperialista, essa sim um perigo para a burguesia e o imperialismo que controlam essas fundações. É o que ocorre com a promoção do identitarismo.
Para não ficarmos em abstrações e casos hipotéticos, vamos citar um episódio real, ocorrido no Brasil há pouquíssimo tempo. Em 2018, Bruno Brandão, da Transparência Internacional (que é financiada por governos de diversos países imperialistas, como EUA, França e Reino Unido, e também pela Open Society), conversava com Deltan Dallagnol sobre como impulsionar o projeto da Operação Lava Jato sobre medidas contra a corrupção.
“Acho que temos que fazer campanha de bastidores desde já com influenciadores de esquerda, principalmente na academia, imprensa e meio artístico, conquistar confiança mais que tudo. Depois o resto é muito mais fácil. Acho que o truque será desarmar a resistência da esquerda primeiro pra só depois entrar em campo. Vamos mapear esses influenciadores e começar a apresentar o projeto, enquanto isso, a campanha publicitária vai sendo preparada”, disse Brandão, citado pelo Conjur.
Um exemplo muito claro envolvendo a própria Fundação Ford que reflete exatamente esses métodos descritos por Saunders foram os protestos contra a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, cujo movimento ficou conhecido como “Não vai ter Copa”. Setores da esquerda pequeno-burguesa ─ mais notadamente o PSOL e seus apêndices, como PCB e PSTU ─ estiveram na linha de frente das ações, acreditando estarem lutando por causas justas como o direito à moradia (oportunidade encontrada por Guilherme Boulos para, a partir daí, se projetar na política nacional como uma “nova liderança” na esquerda). Possivelmente, esses setores, motivados principalmente pela repulsa ao PT e à sua conciliação de classes, acreditando ser esse partido o grande entrave para a luta dos trabalhadores no Brasil, não precisassem de qualquer outro incentivo para realizar seus protestos. Porém, o imperialismo viu aí uma chance de promover seus interesses, sem ter de impor uma política determinada: ela já estava dada; precisava apenas de um “empurrãozinho”.
Foi assim que a Fundação Ford mobilizou dezenas de ONGs (como Anistia Internacional, Human Rights Watch, Justiça Global, Conectas, FASE, Artigo 19, Instituto ETHOS) financiadas por ela para, em ações conjuntas com essas organizações de esquerda, realizar o movimento contra a Copa do Mundo. Todos os comitês populares da Copa, de cada cidade-sede, foram financiados pela Fundação Ford através do Fundo Brasil, criado por ela. Pesquisadores que se notabilizaram naquela época pelas denúncias contra supostas violações de direitos humanos causadas pela Copa do Mundo também foram financiados pela Fundação Ford. Até mesmo o MTST, que apareceu, de fato, como movimento que ganhou importância na esquerda, a partir de 2014, também recebeu financiamento da Fundação Ford.
Novamente, assim como vem ocorrendo ao menos desde a década de 1950, o governo dos EUA (por meio da CIA, principalmente, que está por trás da Fundação Ford, ou do NED, ou da USAID…) investiu em uma esquerda compatível com seus interesses para impulsionar um movimento ─ uma mini “revolução colorida” ─ contra uma esquerda que, a partir daquela época, se tornava incompatível com esses interesses. No caso, o PT e o governo Dilma Rousseff, que viriam a ser derrubados por um golpe de Estado apenas dois anos depois.
Mas um dirigente ou organização de esquerda vender sua política para os capitalistas é algo absolutamente normal, na opinião de Breno Altman. O estranho, segundo ele, é que uma outra parcela da esquerda não concorde com isso! De acordo com ele, trata-se de um “diz-que-diz” que “somente faz o jogo da direita”. Assusta mais ainda quando Altman ataca militantes de seu próprio partido, a maior vítima das ações desestabilizadoras e golpistas promovidas pelos órgãos estrangeiros (como o “Não vai ter Copa”), por caírem “nessa cantilena” e reproduzirem “esse sectarismo doentio” ─ referindo-se às denúncias do PCO.
Já não bastasse o episódio do “Não vai ter Copa”, um fato ocorrido nos últimos dias é suficiente para refutar as acusações de tipo “teoria da conspiração” realizadas por aqueles que se recusam a discutir seriamente esse financiamento, como Breno Altman. Acabou de sair do forno: representantes do MST, do MTST, do MAB, APIB, Greenpeace, Instituto Marielle Franco e Instituto Vladimir Herzog, dentre outros, fundaram o Washington Brazil Office (com sede na capital dos EUA), que se apresenta como um think tank dirigido, em um primeiro momento, a produzir análises sobre as eleições deste ano em nosso País.
Uma outra organização afiliada é a ONG Artigo 19 (que é financiada pela Fundação Ford, Freedom House, NED, USAID, Open Society e Departamento de Estado dos EUA, dentre outros). Outra é o Instituto Peregum, financiado pela Fundação Tide Setúbal, do Itaú.
Cito aqui, para não me alongar na lista de organizações afiliadas ao WBO que têm ligações cristalinas com o imperialismo, apenas mais uma. O Instituto Sou da Paz, que é financiado pelo Fundo Brasil, NED, Open Society, OAK Foundation, Embaixada Britânica em Brasília, Fundação Lemann, Itaú e Grupo Globo, dentre outras instituições. O Sou da Paz tem como instituições parceiras a Conectas, Anistia Internacional, Human Rights Watch, Justiça Global, o Governo do Estado de São Paulo, o MP-SP, a Prefeitura de São Paulo, a Polícia Militar do Estado de SP, a Polícia Civil de SP, a Polícia Científica de SP, a Guarda Civil Metropolitana e o Ministério da Justiça, por exemplo.
O WBO tem como embaixadores Sonia Guajajara (líder da APIB e ex-candidata à vice-presidência da República na chapa de Guilherme Boulos pelo PSOL), Jean Wyllys (ex-PSOL, hoje no PT), a cantora Daniela Mercury e os atores Wagner Moura e Gregório Duvivier. E quem financia esse empreendimento? A Open Society, do especulador financeiro bilionário George Soros, e o Instituto Galo da Manhã, vinculado ao GIFE, um grupo que tem como parceiras a própria Open Society e também a Fundação Ford e que tem em seu conselho de governança membros da JP Morgan, da Fundação Roberto Marinho (Rede Globo) e da própria Fundação Ford.
Essas informações acima, bem como as que expusemos sobre Guilherme Boulos e o IREE, não saíram de nossa cabeça, ao contrário do que fala Breno Altman ─ que, como jornalista e analista político, deveria verificar as fontes que utilizamos e assim comprovaria a verossimilhança de nossas denúncias. Ele diz, para caluniar e desacreditar o PCO: “que um pequeno partido atue como seita, disseminando a divisão e a cizânia, não é novidade. Tampouco que invente ou manipule informações para atacar quem quer que seja.”
O companheiro Rui Costa Pimenta já explicou detalhadamente o que é uma seita e porque setores da esquerda, imitando a Igreja Católica, deturpam essa concepção para atacar dissidentes políticos. Portanto não vou me deter nisso.
Nós estaríamos a serviço da direita com a finalidade de dividir a esquerda. Mas como, se estamos justamente denunciando a esquerda que se vende para a direita e que, portanto, ajuda a enfraquecer o movimento popular? Não é o PCO que ajudou a derrubar o PT, que criou a Frente Povo Sem Medo como contraponto da Frente Brasil Popular, que até agora não apoia a candidatura Lula. Se o PCO estivesse a serviço da direita, não denunciaria esse esquema de financiamento, pelo contrário: o apoiaria e receberia esse financiamento. Breno Altman, portanto, inverte as coisas: quem não recebe dinheiro do imperialismo está a serviço da direita, mas quem recebe dinheiro do imperialismo não está a serviço da direita. Que mente brilhante!
O nosso gênio do raciocínio lógico não termina por aí. Como um bom stalinista, utiliza Lênin para justificar os maiores absurdos ─ no caso, a esquerda ser financiada pelos EUA. “Frente a acusações de que os bolcheviques usavam métodos criminosos para angariar fundos, que tinham recebido dinheiro de bancos britânicos ou ajuda do imperador alemão, teria Lenin respondido: ‘na luta de classes, não importa de onde vem os recursos, mas para onde vão’.” Não é uma citação direta de Lênin, pois Altman reconhece que ele “teria” dito isso. Ou seja, alguém disse que Lênin disse isso. Pobre Vladimir, mesmo após quase cem anos de sua morte, os stalinistas e oportunistas de toda ordem continuam prostituindo-o sem vergonha nenhuma.
Pois bem, o que importa, segundo esse raciocínio, é o destino dos recursos. Altman quer nos obrigar a ter plena confiança em quem recebe o dinheiro da Fundação Ford. Sim, são revolucionários, militantes abnegados, dedicados total e exclusivamente à causa do proletariado. Se Lênin tivesse dito isso que Altman colocou em sua boca, seria no sentido de que o que importa é qual a política de quem recebe esse financiamento. Logo, devemos nos perguntar: a política de Boulos, do PSOL, do MTST e dessas diversas ONGs “de esquerda” é uma política revolucionária? É uma política anti-imperialista, pelo menos? Não, muito pelo contrário: é uma política pró-imperialista e em defesa da colaboração política com a direita golpista brasileira. Essa esquerda tem a mesma posição da Fundação Ford e da CIA em todos os temas internacionais (repúdio aos governos de Venezuela e Nicarágua, complacência com os crimes do imperialismo etc.) e mesmo nacionais (afinal, são grandes “defensoras” da mulher, do negro, do LGBT, do índio, do meio ambiente, não são?). O vídeo abaixo é esclarecedor.
Cabem algumas perguntas: quem usa quem? O trabalhador usa o patrão ou o patrão usa o trabalhador? Boulos usa o IREE, NED, Warde, Etchegoyen, Jungmann e Daiello ou eles usam Boulos? O mais forte financeiramente usa o mais fraco, obviamente. Como a própria esquerda gosta de dizer: quem paga a banda, escolhe a música. Se a esquerda é combativa e não se dobra aos interesses do imperialismo, então por que uma organização imperialista a estaria financiando? Será que Olavo tinha mesmo razão, o marxismo cultural existe? A esquerda realmente estaria conseguindo se infiltrar nas instituições, enganando George Soros e a CIA para conseguir fundos para a revolução socialista? Mas então, por que o governo cubano proíbe o funcionamento da Fundação Ford, da Open Society, do NED, da USAID em seu país?
Os nossos “marxistas”, que corretamente são contrários ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais (até o momento em que concluímos este artigo, pelo menos) deveriam responder a essas perguntas e explicar qual a diferença para o financiamento de instituições imperialistas à esquerda nacional.