O debate sobre a relação entre os direitos individuais e o dito direito coletivo ganhou vulto nos últimos meses, gerando uma enorme polêmica na sociedade e uma grande confusão dentro da esquerda. Os elementos históricos e filosóficos que dizem respeito a este assunto mereceriam, por sua vez, um tratamento mais aprofundado, o que não será possível realizar em um artigo de opinião que tem por objetivo ser uma coluna semanal. Porém, tratemos de elencá-los e de comentá-los brevemente, para ao menos partirmos de um ponto de vista comum para tratar deste assunto, que é o viés marxista.
Para isso, é necessário primeiro partirmos da concepção marxista de Estado. É quase de notório domínio dentro da esquerda que Marx e Engels estabeleceram que o Estado é um instrumento de dominação de uma classe sobre outra, ou outras, a depender de cada época histórica. Desde o final da chamada comunidade primitiva, e o surgimento portanto da luta de classes, o Estado tem atuado sempre como defensor das classes dominantes, independentemente da região ou do período ao qual estivermos observando. Apesar de este axioma ser ao menos conhecido por grande parte da esquerda, é preciso desde já observar que a imensa maioria das organizações e partidos de esquerda não atuam de acordo com este princípio, já que frequentemente encaram o Estado como uma espécie de agente civilizador, outorgando um papel ao Estado que é completamente estranho ao marxismo. Poderíamos aqui citar dezenas de exemplos concretos, nos últimos anos, em que a esquerda brasileira tem agido como se o Estado capitalista, que nada mais é do que um despacho dos interesses econômicos e políticos da burguesia, fosse por fim nos levar a uma sociedade mais evoluída, e que no fim das contas chegaríamos ao socialismo por meio de criação de leis e outras ações institucionais. Um verdadeiro devaneio, uma ilusão alimentada por aqueles que não observam atentamente nem a história, nem a teoria de Marx e tampouco a realidade em que vivem.
A não observância deste princípio basilar do marxismo, leva a esquerda à mais completa confusão política. Nos últimos meses, essa confusão tem se manifestado na (falsa) polêmica da relação entre os direitos individuais e os direitos coletivos. Primeiramente, essa polêmica se deu em torno da liberdade de expressão, direito fundamental conquistado pelos cidadãos a partir da eclosão da Revolução Francesa, num amplo processo de luta contra a censura imposta pela Igreja Católica durante toda a Idade Média e Moderna, durando cerca de mil anos. A discussão veio à tona a partir da censura e prisão contra membros da extrema direita, levadas a cabo pelo judiciário brasileiro, sobretudo pelo STF. Nesses episódios, somente o PCO se colocou contra a prisão e a censura desses elementos da extrema direita, com destaque para o caso do deputado Daniel Silveira, que foi preso por supostamente ameaçar o regime político brasileiro, que todos sabemos, é um poço de honestidade e funciona na mais perfeita harmonia. Os demais partidos e boa parte dos militantes da esquerda nacional entraram em êxtase com a ação dos heróis do STF, que, segundo eles, estariam resguardando a democracia brasileira e salvando o país do fascismo.
Logo após essa polêmica, surgiu então a questão da obrigatoriedade da vacina. Carregados por um clima de histeria coletiva, setores da esquerda embarcaram na política da direita tradicional de obrigar as pessoas a tomar a vacina, independentemente de qualquer que seja a restrição que cada um possa ter sobre as vacinas. Ainda que a própria resistência à vacina seja relativamente baixa, e que a própria vacinação só não esteja mais adiantada por falta de organização dos sistemas de saúde em nível nacional, a esquerda decidiu apoiar a direita, liderada pelo PSDB e pela Rede Globo, na sua política de chicote sobre a população pobre do país. Sem qualquer espírito crítico, a esquerda, novamente nesse caso, parece acreditar que existe uma espécie de espírito civilizatório na direita e no Estado, e entregou nas mãos da direita a política de combate à pandemia, aceitando a repressão como método de atuação para superar a atual situação.
Em ambos os casos, o discurso da esquerda para apoiar essas medidas, levadas a cabo pela direita tradicional brasileira, ligada diretamente ao imperialismo, é o de que essas medidas são necessárias, pois os direitos coletivos se sobrepõem aos direitos individuais (liberdade de expressão e liberdade de decisão sobre o próprio corpo). Aqui caberia analisar esses argumentos da esquerda a partir de dois aspectos. O primeiro, relacionado ao que foi dito no início do texto, é o de que a esquerda brasileira acha realmente que o Estado estaria atuando como uma espécie de agente civilizador, contra as forças do mal representadas pelos bolsonaristas. Esse mesmo Estado, e essas mesmas forças políticas, que recentemente derrubaram uma presidente eleita pelo voto popular, estaria resguardando não só a democracia como os nossos direitos coletivos. Certamente qualquer pessoa honestamente intelectual dentro da esquerda, ao refletir sobre esse aspecto, chegará à conclusão de que as aparências estão bastante distantes da realidade.
Mas o segundo aspecto dessa questão é talvez mais abstrato e merece um pouco mais de atenção dos companheiros (aqueles que estão honestamente interessados no debate), para que possamos refletir sobre essa falsa dicotomia entre direitos individuais e direitos coletivos. Em primeiro lugar, não existe essa separação entre direitos individuais e direitos coletivos. Na verdade, no capitalismo sequer existem direitos coletivos. O que existem são direitos dos cidadãos, conquistados a partir da luta que se trava no interior de cada sociedade, onde o Estado se vê obrigado a efetivar esses direitos, tornando-os coletivos, na medida em que o direito de um é o direito de todos, já que em tese todos são iguais perante a lei. A esquerda que advoga abstratamente os chamados direitos coletivos, está na verdade invocando uma vertente do direito conhecida como direito natural, que era bastante comum nos primórdios do iluminismo, mas que já no advento da Revolução Francesa estava ultrapassada. Segundo essa vertente, existiriam direitos coletivos inerentes aos seres humanos, aos quais os direitos individuais não poderiam se sobrepor. Nada mais falso que essa concepção. Não existem direitos naturais. O que existem são direitos conquistados pela luta social e política ao longo das épocas históricas. Por exemplo, o direito de liberdade de expressão não é um direito individual apenas. Ele é um direito de todos os cidadãos que compõem uma sociedade. Se esse direito está sendo negado a uma ou mais pessoas, ele está a ponto de ser negado ao conjunto da sociedade, principalmente às classes sociais oprimidas, que não controlam o poder político do Estado. Portanto, a única forma de mantermos este direito para as classes oprimidas, é exigindo que esse direito seja universal, que ele exista para todas as pessoas, independentemente de concordarmos com o que essas pessoas digam, e independentemente do quão absurdo for o que essas pessoas estejam dizendo.
Em segundo lugar, advogar pelos direitos coletivos é algo muito abstrato. Peguemos o caso específico da obrigatoriedade da vacina. Companheiros da esquerda dizem que o direito à vida se sobrepõe ao direito de você poder decidir sobre o seu próprio corpo, ou seja, de você poder escolher se quer tomar determinado medicamento ou não. Aqui poderíamos entrar no debate do quão manipulados são esses estudos pseudo-científicos sobre as vacinas, todos eles financiados pelos próprios laboratórios fabricantes das vacinas, mas deixemos isso para outro momento. Acontece que o direito à vida não existe na prática na sociedade capitalista. Grande parte da população mundial, e aqui incluímos boa parte dos brasileiros, não têm minimamente assegurado o direito à vida. Para termos o direito à vida, necessitamos de uma série de pré-requisitos que precedem em muito a questão da vacina. Primeiramente precisamos ter direito à comida, à moradia, ao trabalho, à saúde em geral, à segurança, e uma série de outros direitos concretos que são negados a uma parcela gigantesca da população mundial e brasileira. Portanto, o direito coletivo à vida simplesmente não existe, ao menos para centenas de milhões de pessoas. Ele é apenas uma abstração.
A impressão que dá é que esse direito à vida, exigido com tanto fervor por setores da esquerda, parece ser um direito à vida para a classe média, à qual não falta nada de material, e que portanto escolhe a seu bel prazer o que seria o direito à vida. Muito seletivo, não acham? Se essa esquerda, que exige com tanto fervor que as pessoas sejam obrigadas a se vacinar, adotassem esse mesmo rigor contra o Estado capitalista, exigindo que o mesmo garantisse de fato o direito à vida para o conjunto da sociedade, quem sabe esse direito deixasse de ser apenas uma abstração para se tornar realidade.
Portanto, em ambos os casos, trata-se de um verdadeiro engodo, armado pela direita e reproduzido pela esquerda, onde na verdade, ao invés da garantia do direito coletivo, se está suprimindo direitos fundamentais conquistados pela luta dos povos durante muitos séculos. No capitalismo, não existem direitos coletivos, a menos que sejam conquistados à força pela luta dos trabalhadores, que obrigam o Estado a garantir esses direitos. E mesmo assim, esses direitos nunca são estáveis, e a qualquer momento podem ser retirados. Sendo o Estado capitalista um mero instrumento da burguesia, o que resta aos socialistas é sempre lutar contra o Estado. Os direitos cidadãos são, ao fim e ao cabo, direitos contra o Estado. Somente no socialismo, ou seja, numa sociedade dos trabalhadores e para os trabalhadores, onde a classe operária realmente tenha o domínio do Estado, é que poderemos falar em direitos coletivos. Enquanto isso, nos resta sempre lutar para manter e ampliar os direitos individuais, ao mesmo tempo que travamos a luta política com o objetivo de destruir o Estado burguês e construir no seu lugar um Estado operário.
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