Golpe

O NED e a contrarrevolução no Egito

Como grupos em defesa da “democracia” levaram o país de uma ditadura a outra ainda pior

No dia 25 de janeiro de 2011, uma imensa mobilização popular, que em menos de um mês viria a derrubar o governo de Hosni Mubarak, tomou conta da Praça Tahrir, no Cairo. De acordo com a imprensa internacional, o caso demonstrou o poder das redes sociais, em particular do ainda jovem Facebook, como forma de organização popular e como meio de furar o bloqueio de regimes autoritários. Mubarak governava o Egito com punhos de ferro há quase 30 anos.

Além do governo autoritário, a classe operária sofria nas mãos de um governo cada vez mais neoliberal. A política de Estado mínimo também desidratou os militares e fez Mubarak perder parte do apoio que tinha das forças armadas. Faltava apenas um ingrediente para que a crise do regime político egípcio explodisse, o que veio com as primeiras mobilizações da chamada “primavera árabe”, na Tunísia. Os eventos no país vizinho levaram a juventude do Egito a se organizar pelas redes sociais no Dia Nacional da Polícia, 25 de janeiro, como forma de protesto contra a violência policial imposta pelo governo.

Num País onde, na época, apenas uma a cada nove pessoas possuía conexão com a internet e, nesse grupo, menos de 9% estavam conectados ao Facebook, é difícil imaginar que lideranças de um grupo de 70 mil usuários na rede social se tornem líderes de um movimento de massas. Ainda assim, o Movimento Jovem 6 de Abril, fundado em 2008 após protestos contra a posição complacente do governo egípcio em relação aos ataques de Israel contra Gaza, se tornou a face da Revolução Egípcia na imprensa internacional.

A organização que viria a controlar o governo egípcio nas eleições ocorridas após a queda de Mubarak, na realidade, teria pouca relação com o 6 de abril. A Irmandade Muçulmana, jogada na clandestinidade durante a ditadura, formou um partido político em 2011, logo após a revolução, e conquistou a maioria dos assentos nas eleições parlamentares, apenas para vencer as eleições presidenciais em 2012 com Mohamed Morsi. A ideologia do grupo, porém, apesar de estar em sintonia com a maioria da população egípcia, conservadora e muito conectada ao islamismo, batia de frente com os valores dos jovens do 6 de abril que defendiam uma democracia nos moldes ocidentais. Mais do que isso, os posicionamentos da Irmandade Muçulmana colocavam em xeque os interesses do imperialismo na região.

Um dos primeiros representantes internacionais que Morsi recebeu como presidente do Egito foi Khaled Meshaal, líder do Hamas. O grupo palestino que controla a Faixa de Gaza e que trava uma dura luta contra o Estado de Israel está internacionalmente ligado à Irmandade Muçulmana de Morsi, que se encontra organizada na maioria dos países árabes. O Egito é o segundo país que mais recebe auxílio financeiro militar do governo dos EUA e, além disso, é um dos únicos países árabes a ter relações diplomáticas estabelecidas com Israel, estado que mais recebe apoio militar dos EUA. Era claro, portanto, que o risco de um governo egípcio que confrontasse a opressão israelense contra Gaza ou, até mesmo, que apenas não se omitisse era grande demais para a política do imperialismo para o Oriente Médio que, naquele momento, atravessava o ponto mais intenso da Guerra do Afeganistão.

Eis que entram em cena os manifestantes do 6 de abril novamente, desta vez contra o governo democraticamente eleito de Morsi. Acusavam o presidente de se valer dos mesmos métodos repressivos do governo anterior e de querer instalar uma legislação de origem islâmica. A juventude “democrática” então, em junho de 2013, entra em cena e, para controlar os embates entre eles e os apoiadores de Morsi, entra em cena o General Abdel Fattah el-Sisi. Sisi dá ao governo 48 horas para controlar a situação, o que não ocorre, levando ao estabelecimento de um governo militar que provoca um verdadeiro banho de sangue. Milhares de apoiadores da Irmandade Muçulmana são mortos, dezenas de milhares são presos e a organização é novamente colocada na ilegalidade. Os líderes do Movimento 6 de abril, já tendo cumprido seu papel, também estão presos e a contrarrevolução triunfa no Egito jogando o país numa ditadura ainda mais brutal que a de Mubarak, mas que nutre menos contradições com o imperialismo que muito satisfeito ainda a financia generosamente.

Para compreendermos em profundidade o caos que se desenrolou no Egito entre 2011 e 2013, precisamos, principalmente, entender como um movimento de jovens confusos, lutando por uma ideia abstrata de democracia, ganhou tanta projeção. O resultado político, isto é, a destruição da Irmandade Muçulmana no Egito, movimento que era genuinamente apoiado por uma larga parcela da população, nos dá uma excelente pista.

Em reportagem publicada no The New York Times em abril de 2011, o jornal se vangloriava do papel progressista de organizações cujos líderes foram “treinadas por norte-americanos em campanha e organização através de novos meios de comunicação e monitoramento de eleições”. Entre eles estavam os líderes do movimento 6 de abril do Egito. Jovens egípcios e de outras nacionalidades haviam recebido treinamento e financiamento de grupos como o Instituto Republicano Internacional, o Instituto Democrático Nacional e a Casa Liberdade, todas Organizações Não-Governamentais (ONGs) financiadas pelo NED (National Endowment for Democracy, ou Fundo Nacional para a Democracia).

De acordo com relato do Departamento de Estado norte-americano, em dezembro de 2008, esses jovens foram trazidos a um congresso em Nova Iorque com participação de membros do Facebook, Google, YouTube (ainda não adquirido pelo Google), MTV, Universidade de Direito de Columbia e, é claro, o próprio Departamento de Estado. O evento foi inspirado pelo “sucesso” do grupo de jovens reacionários no Facebook denominado “Um milhão de vozes contra as FARC”, que organizou protestos contra os revolucionários colombianos já massacrados pelo governo local e pelo imperialismo.

As ligações do movimento com o imperialismo era tão promíscuas e perniciosas que elementos mais esclarecidos dentro do 6 de abril, apesar de ainda confusos, acusaram Ahmed Maher, um de seus fundadores, como “traidor” por ter se associado a uma “organização sionista”. De fato, a NED e seu patrocinador, os EUA e a sua Agência Central de Inteligência (CIA), são o principal sustentáculo do Estado de Israel. A situação ficou ainda mais suspeita quando surgiu um rumor dentro do movimento de que Maher transformaria o grupo numa ONG, para receber abertamente financiamento externo. Isso rachou a organização e levou à fundação do Movimento Jovem 6 de Abril Frente Democrática.

Outro fundador do 6 de abril era Mohammed Adel, que havia sido treinado pelo Centro para Ação e Estratégias Não-Violentas (CANVAS), uma entidade fundada pelo movimento sérvio golpista Optor! que viria a desestabilizar o país ainda mais após o fim da Iugoslávia. O CANVAS, naturalmente, também está conectado com o NED. A sua ideologia, assim como a do movimento 6 de abril e a de praticamente todos as revoluções coloridas organizadas pelo imperialismo estão associadas à obra de Gene Sharp, fundador da Instituição Albert Einstein, e maior promotor da “revolução não-violenta”. Suas principais obras são o livro “Da ditadura à democracia” e o documentário sobre os acontecimentos transcorridos no Egito em 2011 intitulado “Como iniciar uma revolução”. A instituição de Sharp foi financiada pelo NED e pela Fundação Ford nos anos 1990 e, se ainda não o é, é recomendada pelo NED como referência em “fortalecimento da sociedade civil”.

No golpe contra a Irmandade Muçulmana, a figura preferida do imperialismo para assumir o controle do Egito era Mohamed ElBaradei, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2005 por seu trabalho contra o armamento nuclear. ElBaradei havia sido publicamente apoiado para a presidência por Ahmed Maher e participou do governo golpista imposto por Sisi em 2013 como vice-presidente. Após a repressão violenta das manifestações pró-Morsi, porém, o “pacifista” renunciou e voltou para Viena, onde estava anteriormente como funcionário da Organização das Nações Unidas. 

ElBaradei, esse grande progressista egípcio, é membro da Fundação Liderança Global, que recentemente anunciou “com orgulho” sua parceria com a inciativa de nome extremamente suspeito Transições de Poder. Não é preciso dizer que essa iniciativa é capitaneada pelo NED, além de outros fundos imperialistas – todos fachadas da CIA – como o USAID.

Apesar de não ser ElBaradei, Sisi tem sido um bom vassalo regional para o imperialismo mundial. Apesar de oferecer resistência à entrada de capital estrangeiro em certos setores da economia, conduz uma dura repressão contra o Estado Islâmico, organizado no Egito na Península do Sinai; mantém ótimas relações com Israel, tendo recentemente mediado os “acordos de paz” entre o Estado terrorista e Gaza; e continua a esmagar o povo egípcio. Maher, do 6 de abril, ficou preso três anos e agora encontra-se solto, mas outras lideranças de seu movimento “democrático” ainda estão presas ou no exílio.

A situação egípcia ilustra bem como o imperialismo faz uso de uma campanha demagógica em defesa da “democracia”, da “igualdade” e outros conceitos abstratos – que nem são concretizados nos próprios países imperialistas – para empurrar uma política impopular e golpista. O resultado político, na ditadura de Sisi, também mostra que os objetivos do imperialismo em nada têm a ver com nenhuma democracia e deixa claro que seus agentes patrocinados, cientes ou não do papel que cumprem, são completamente descartáveis.

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